Sobre o Impeachment

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Nessa época de polarização, surpreendo-me com a quantidade de certezas que vejo por aí. Tenho muita familiaridade com o estudo do Direito e há algumas semanas me debrucei sobre a questão do impeachment que está em andamento na comissão especial da Câmara dos Deputados. Devo reconhecer que não está nada fácil tomar um partido.

Tomei o cuidado de ler a denúncia, os artigos da Constituição, a Lei de Impeachment e a Lei de Responsabilidade Fiscal. O que posso dizer, sem medo de errar, é que são muito poucos os que buscam ir à fundo nesse assunto. As opiniões são firmadas a priori, com base no contexto e nos personagens envolvidos. A paixão e não a razão move a política.

Estamos em uma democracia. Nesse regime, todos são considerados iguais em direitos e obrigações. Além disso, cada voto, cada opinião é importante, seja a do mais desinformado cidadão até a do mais engajado e estudioso jurista.

Julgar, para muitos, é um ato de vontade: recorremos à racionalidade apenas para enfeitar nossos julgamentos. Kant, em sua Crítica a Faculdade do Juízo, discorre sobre o Julgar, mas começa a análise por um exemplo perturbador: nosso juízo sobre o sabor dos alimentos (sua crítica é também conhecida por Crítica ao Gosto). Experimento, gosto disso, não gosto daquilo. Quanta racionalidade há nisso? Posteriormente Kant evolui para o tema do Direito, estabelece o conceito de juízo determinante, indicando que, nessa disciplina, o julgar é puramente racional, que teria um fim bem definido. Não gosto de contrariar Kant, mas aqui o equívoco é flagrante.

Quem acompanhou as discussões nos últimos dias foi capaz de perceber como a discussão jurídica pode ser instrumentalizada para atingir o fim que se pretende. E como a coerência é artigo raro na política. Talvez eu ainda escreva um longo artigo sobre a tipicidade da conduta da Presidente Dilma em face da Lei do Impeachment. Mas hoje pretendo chamar a atenção para apenas alguns pontos:

1 – Quem se dispuser a ler o pedido de Impeachment de Collor se surpreenderá com a tibieza da peça acusatória. Há muito pouca materialidade. E parte considerável das provas foi obtida de vazamentos ilegais de técnicos do Banco Central e do Banco do Brasil.

2 – Eduardo Cunha não admitiu a denúncia contra Dilma Rousseff relativamente às pedaladas fiscais ocorridas em 2014. Para quem não se lembra, foi no ano de 2014 que a Lei de Responsabilidade foi efetivamente descumprida. No ano de 2015 ocorreu o ajuste, o acerto de contas. A Dra. Janaína Paschoal sacou o argumento de continuidade delitiva. Mas é óbvio que o que conta é a data do “empréstimo” tomado irregularmente pelo Governo: 2014.

3 – A emenda da reeleição foi promulgada quando já vigia o dispositivo que limitava a aplicação da pena por crimes de responsabilidade aos cometidos durante o mandato. Em minha opinião, Eduardo Cunha poderia ter admitido a denúncia quanto à pedaladas de 2014.

4 – Se eu fosse um Juiz de Direito e estivesse diante de um processo penal, inocentaria a Presidente Dilma, pelas seguintes razões e tendo em vista os princípios da tipicidade cerrada e da presunção da inocência: a) a Constituição faz menção à Lei Orçamentária e não à Lei de Responsabilidade Fiscal (descumprimento da LRF tem como penalidade a inelegibilidade); b) apesar de ter toda aparência de empréstimos, as operações do Governo envolvendo a Caixa e BNDES não se revestiram de todas os requisitos para ser tratado como tal; c) apesar de a LRF proibir a tomada de empréstimos de Bancos Públicos, a Lei do Impeachment não se refere explicitamente a essa conduta crime de responsabilidade.

5 – O julgamento é político, e não jurídico. Esse é, talvez, o ponto mais tormentoso da análise. Esse argumento de julgamento político é sacado como se permitisse ao Congresso cassar o mandato da Presidente independentemente da subsunção do fato à norma. Ao mesmo tempo, os Deputados e Senadores não são juristas. São especialistas em política, leigos no campo do Direito. E é como leigo que cada um deve tomar sua decisão.

6 – Votos todos têm. A Constituição criou um regime bem pensado, em que o afastamento do Presidente da República envolve todos os poderes. O mesmo povo que elegeu a Presidente também elegeu o Congresso Nacional. Um não tem mais legitimidade do que o outro. Afastar a Presidente exige fato típico, 2/3 dos votos dos Deputados e julgamento pelo Senado conduzido pelo Presidente do STF. Nessas condições, golpe é palavra do mundo da política.

O momento é tormentoso. Se Dilma conseguir impedir o impeachment, terá um caminho muito acidentado pela frente, com o progresso da Lava Jato e com a necessária guinada à esquerda. Se Temer assumir, será atacado por uma forte oposição ligada aos movimentos sociais, sindicatos, CUT, MST e dificilmente terá o apoio dos movimentos que hoje lutam pela derrubada do PT. Além disso, a Lava Jato deve pôr fim a seu mandato em algum momento.

O momento ainda é de crise. E não há sinais de luz no fim do túnel. Importante nesse momento é manter a calma. As instituições estão em movimento. Aparentemente estão funcionando, ainda que estejam sob forte pressão. Tratemos de nos manter com o espírito aberto, com um olhar fraterno para os que têm ideias divergentes, acreditando que democracia é assim mesmo: feitas por diálogo, acordos, rompimentos e coalizões. Que siga o jogo.

Gustavo Theodoro

2 comentários

  1. O caminho seria via cassação da chapa via TSE. Mas quem disse que este caminho seria menos política e mais jurídico?

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