Daquilo Que Eu Sei

pensador

Sartre dizia, quando jovem, que tinha o livro como um objeto sagrado, representando para ele muito mais do que tão somente a perspectiva de novos conhecimentos. Era a própria verdade, pura, inata, que cedo ou tarde se desvelaria por meio da leitura.

Eu já fui grande apreciador de Sartre. Li quase tudo que ele escreveu. Até mesmo seu livro sobre Freud, de quem sou crítico, acho admirável. Com o tempo fui me afastando de Sartre. Hoje só aprecio O Diabo e O Bom Deus – muito – e A Náusea – menos. Mantenho, no entanto, parte do sentimento pelos livros descrito por Sartre. As capas, as orelhas, as sinopses, tudo isso enceta a promessa de encontrar, senão a verdade, aquele pensamento inédito ou uma reflexão brilhante sobre o mundo ou sobre a vida.

É evidente que, com o tempo, com a maturidade, muitos escritos se tornam comuns, às vezes até banais, mesmo quando referendados pela crítica. A filosofia tampouco foi capaz de produzir, a partir da segunda metade do século XX, algo realmente original. Há ainda boa literatura sendo produzida, mas ela é claramente menos essencial do que a dos clássicos.

Foi Adorno, em 1945, quem cunhou o termo indústria cultural, que interpretou a arte como uma forma de manufatura. Tal como um tijolo, a produção de livros passou a depender de investimento para subsistência do autor durante sua escrita, para adquirir papel, para pagar encadernação e para fazer frente aos demais custos de produção. Como dinheiro foi investido, passou a ser necessário que o produto fabricado tivesse mercado, pois senão o editor capitalista não se reembolsaria nem obteria lucro. Esse método fabril teve grande impacto sobre o meio literário, provocando incremento na produção e nas vendas, com consequente redução na qualidade.

Eu tenho fortes ligações com a indústria cultural contemporânea. Aprecio alguns filmes – cada dia menos -, uma boa quantidade de séries e poucos autores literários. Mas se é profundidade o que se busca, não há como fugir das velhas obras.

É bom advertir que, para quem busca a verdade, com V maiúsculo, não há esperança, mesmo que se recorra aos clássicos. Não que ela não esteja lá. Mas há uma máxima que diz que o verdadeiro clássico nunca diz tudo. Seja na literatura, seja na filosofia, sempre que um autor se aproxima das mais quentes questões de nossa existência, a verdade nos foge. O famoso princípio da incerteza da física, que impõe limites a nosso conhecimento do mundo, parece se estender para além de sua aplicação original.

A filosofia historicamente evoluiu como exercício de refutação e recomposição. Aristóteles tem Platão como mestre e o refuta. O mesmo se viu com Schopenhauer e Kant, Nietzsche e Schopenhauer, Heidegger e Husserl. Assim, o pensamento pode ser contado como uma história de construção e desconstrução, tese e antítese, mas sem revelar um sentido evolutivo, como se percebe nas ciências exatas.

Com o estupendo avanço das ciências físicas, a filosofia e a política se viram diante da necessidade de responder a esse tipo de questionamento. Hobbes tentou – e fracassou -, a partir da observação da realidade e de dados empíricos, descrever a política a partir de relações de causa e efeito. Essa busca por encontrar equações tal como a lei da gravitação universal para o campo das ciências humanas fracassou redondamente. A política remanesce imprevisível e o pensamento filosófico segue sem dar mostras de que está evoluindo.

Nietzsche percebeu o impasse que vivia a filosofia. Tentou o raciocínio analítico, a crítica, as metáforas e as alegorias. Chegou até a declarar que só era possível filosofar por meio de aforismos. Ao final enlouqueceu (foi a sífilis, mas isso não importa).

Na segunda metade do século XX a filosofia caiu em descrédito, tendo utilidade, quando muito, para fornecer argumentos de autoridade ou para ser consumida – e destroçada – pela indústria cultural. Em outras palavras, a mensagem contemporânea é a de que não se deve perder tempo lendo obras mais profundas, sendo apenas exigida socialmente a exibição de algum conhecimento de autores, quiçá de alguns aforismos, com objetivo autopromocional.

Essas observações fazem surgir a dúvida se devemos ou não investir tempo enfrentando autores muitas vezes herméticos, acompanhar intrincados exercícios de pensamento ou mesmo ler bons clássicos de conteúdos aparentemente superados.

Apesar de não entregar aquilo que os livros prometiam a Sartre, um bom romance de Tolstoi, Vitor Hugo ou Thomas Mann, por exemplo, oferece material para reflexão muito superior, por exemplo, do que livros conhecidos como de “autoajuda”. Ou seja, além de oferecerem entretenimento de muita qualidade, essas obras contribuem para o tão buscado “desenvolvimento pessoal”.

Some-se a isso o fato de que as obras filosóficas colocam o leitor em contato com refinados exercícios de pensamento, cujas técnicas podem ser utilizadas como ferramentas na observação de qualquer fato da vida social. É raro encontrar algum erro na construção do raciocínio por parte de um grande filósofo como Hegel ou Heidegger. Esse tipo de leitura torna nosso software cerebral mais apto a atuar quando exigido.

Além dessas funcionalidades de caráter instrumental, volta e meia a leitura de boas obras responde questões que não tínhamos sequer cogitado elaborar, assim como nos leva a elaborar perguntas que alargam nossa concepção de mundo assim que a formulamos.

Em regra, o ser humano busca mais do que apenas sobreviver, se divertir e “curtir a vida”. O caráter superficial de nossa sociedade, a valorização excessiva do modo de vida “jovem”, a entronização da satisfação imediata e constante de qualquer desejo e a imensa disponibilidade de “produtos culturais” pode estar afastando as pessoas desses outros “desafios”.

O que nem sempre está claro é que é possível também se divertir e “curtir a vida” com outros tipos de experiência que, colocadas em concorrência, acabam sendo preteridas. Martin Seligman defende inclusive que as pessoas são mais felizes, “autenticamente felizes”, quando praticam e completam atividades de maior fôlego.

O principal argumento, no entanto, não comporta argumentos utilitaristas. Disse o filósofo conservador contemporâneo Roger Scruton, que, fora do campo das necessidades,  o que é importante na vida não tem qualquer utilidade. E o que é importante transborda da leitura dos clássicos.

E aí? Animou?

Gustavo Theodoro

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