Esquerda e Direita

Camus e Sartre

Em 1955 Raymond Aron se perguntou se os termos esquerda e direita ainda têm algum significado. As classificações, ainda segundo esse pensador francês, dificilmente podem ser identificadas como certas e erradas, sendo mais apropriado julgá-las por suas utilidades.

Essa divisão, que tem origem no funcionamento das câmaras francesas, cujos partidos de oposição ocupavam os assentos à esquerda do presidente. O objetivo da esquerda de então era combater o Antigo Regime, aristocrático, invasivo, em que a burocracia invadia as vidas das pessoas e decidia seu futuro.

Os partidos de esquerda de 1789 queriam menos estado, menos regulação e mais liberdade. Só no século XIX e, principalmente, no início do século XX, o bloco que chamamos de esquerda passou a defender outros ideais, como o socialismo e a planificação da economia, mesmo com sacrifício da liberdade. Não foram poucos os que identificaram essa guinada, mas a intelectualidade que importava até recentemente deveria exibir o pedigree de esquerda para ser relevante e sempre evitou se aproximar desses assuntos devido ao risco de banimento.

O próprio Raymond Aron, contemporâneo de Sartre e Camus, um dos maiores pensadores do século passado, nunca foi levado muito a sério pela opinião pública por não ser de esquerda. Camus era de esquerda, mas bastou tomar a posição de se afastar da defesa do comunismo soviético para ter sua obra atacada pelos intelectuais, dentre os quais seus amigos, Sartre e Simone de Beauvoir.

Essa predominância cultural da esquerda limitou o debate e restringiu inclusive autocríticas que poderiam significar correção de rumos. A crítica de Camus, por exemplo, que veio de dentro do movimento, poderia abrir os olhos da esquerda para o totalitarismo do regime soviético, evitando vexames como o de Sartre, que continuou defendendo o comunismo mesmo após a Primavera de Praga.

Trotsky, transformado em inimigo por Stálin, teve suas obras proibidas pelos editores, quase todos de esquerda, foi impedido de participar das reuniões da internacional socialista e teve imensa dificuldade até mesmo para conseguir asilo em algum país. Quase nenhum intelectual importante saiu em sua defesa.

Na década de 1960 a esquerda foi novamente redefinida. Além da defesa da socialismo, causas de cunho cultural e social começaram a integrar a agenda da esquerda mundial. A liberdade dos costumes era estranhamente antagônica aos regimes que realmente haviam implantado os regimes comunistas, mas esse tipo de crítica muito raramente era formulado. A revisão seguiu até 1989, quando a queda do Muro de Berlim levou ao fim do socialismo como alternativa viável de sociedade.

Foi então que o estado previdenciário, o modelo nórdico de capitalismo, entrou definitivamente no radar da esquerda, na contramão do movimento original dos partidos de 1789, que lutavam por um estado menor, e mesmo de Marx, que não acreditava no estado como regulador. O antinacionalismo, causa tradicional da esquerda, foi abandonada a ponto de seu oposto ser abraçado, ou seja, a esquerda passou a ser nacionalista. Apesar dessas constantes mudanças de posição e dos incríveis erros históricos cometidos pelo movimento, ser de esquerda continuou, de alguma forma, fornecendo aos que assim se classificam um espécie de superioridade moral, como se só quem se entitula de esquerda pudesse se preocupar com as pessoas, ter empatia, bondade e visão social.

A direita, vista da esquerda, quando não é retratada como fascista, raramente vai além dos atributos “conservador” e “aristocrático”, pelo menos historicamente. É certo que o movimento conservador sempre foi identificado como de direita, até pela defesa original do Antigo Regime (pré-1789 na França) e pelas características de seus pensadores clássicos, como Burke e Tocqueville. Nenhum deles defendia a democracia nem as revoluções, e tinham de fato bons argumentos para isso. Burke anteviu parte dos resultados da Revolução Francesa assim como Tocqueville previu o desleixo da sociedade civil para com a coisa pública nos regimes democráticos.

É fato, no entanto, que direita tanto pode representar o seu extremos, que seria o fascismo (ainda que para muitos o fascismo apresente grande similaridade com a extrema esquerda), como o conservadorismo, o reformismo e o liberalismo econômico. Ou seja, dessa ótica há espaço nesses exemplos de direita para quase toda a sociedade. O fato de a esquerda ainda ser sexy, representar de alguma forma o “bem”, a “solidariedade com o próximo”, contra a elite, os capitalistas, os egoístas, insensíveis e ambiciosos, acaba por limitar importantes debates, pois ainda hoje a esquerda tem certa hegemonia na intelectualidade (ainda que esteja ela meio desacreditada) e no campo cultural.

Ainda hoje, aqui no Brasil, se alguém se atreve a dizer que julgou correto o impedimento da Presidente Dilma dificilmente escapará da alcunha de golpista. Caso venha a ponderar que os direitos trabalhistas acabam por não defender a maioria da população, será acusado de estar ao lado da elite empresarial. A eventual defesa de alguma reforma no sistema de aposentadorias e pensões pode levar a acusações de ligações com o sistema financeiro.

Penso que a redução do uso desses termos, esquerda e direita, – tese também defendida por Raymond Aron – de significados tão fluidos e pouco úteis atualmente, poderia livrar as pessoas dessas amarras e afetos a que se sentem presos, podendo, assim, analisar cada causa com maior distanciamento emocional, evitando-se irremediáveis erros de julgamento e permitindo que o debate de ideias não fosse tão manietado por censuras e autocensuras.

Gustavo Theodoro

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