Mês: fevereiro 2018

Do Debate Ideológico

Como sabemos, a classificação entre “direita” e “esquerda” no espectro político decorre da Revolução Francesa, da posição ocupada pelos defensores da nobreza e por seus opositores. O intelectuais franceses atualizaram continuamente esse conceito, mas por todo o século XX, pelo menos na Europa, era impossível falar de esquerda sem se referir ao socialismo.

“Luta de classes”, “ditadura do proletariado”, “fim da propriedade privada dos meios de produção”, “inevitabilidade do comunismo como destino”, retratar a vida social como antagonismo entre opressor e oprimido, “mais-valia”, esses eram os termos em que a política era discutida pelos intelectuais europeus.

Para o povo americano essa discussão nunca fez muito sentido, já que os conceitos de propriedade privada e liberdade estão amalgamados ao conceito de nação, estando vinculados aos atos de formação daquele País. Mas a América não conseguiu se livrar da ideologização do mundo. Como não parecia viável importar o socialismo e seus conceitos, havia um campo em que uma esquerda ideológica poderia atuar: a crítica ao capitalismo.

Se não era possível criticar a propriedade, pelo menos uma forma vulgar dela poderia ser eleita como alvo. Daí surgiu toda a questão envolvendo o consumismo, a propaganda e a “sociedade de massas”. A ideia era tratar o consumo não como uma demanda das pessoas livres que vivem em ambientes democráticos, mas sim como fruto da exploração de um “oprimido” (consumidor) pelo “opressor” (meios de comunicação, publicitários, empresas fabricantes). O pobre consumidor seria tão manipulado pelas empresas e suas propagandas, vítima de um sistema perverso e injusto, que até mesmo o roubo passaria a ser, na visão de alguns intelectuais de esquerda, aceitável.

Veja que os regimes socialistas que existiram no mundo sempre privaram seus habitantes de acesso aos bens de consumo, seja pela ineficiência dos meios de produção, seja pela tentativa de construir um “novo homem”, interessado em coisas que o regime considerava adequadas (e os bens de consumo nunca estava entre elas). É de se notar que até hoje a esquerda mais utópica admira o regime de Cuba. Turistas de todas as partes do mundo olham para aquela sociedade, que se assemelha aos filmes da década de 1950, e imediatamente são tomados por nostalgia de um passado que não viveram.

“Como o homem precisa de pouco!”, “eu viveria aquela existência feliz e simples se fosse cubano”, são os depoimentos que usualmente ouvimos dos que visitaram o país. Ninguém parece capaz de se perguntar se os moradores da ilha preferem viver aquela vida lúdica e admirada pelos bem nutridos visitantes com seus iPhones ou se não prefeririam ter liberdade para empreender, emigrar ou mesmo estragar suas vidas ao gosto de cada um.

Aqui no Brasil recebemos influência da esquerda europeia e americana. O socialismo está presente nos programas de todos os partidos de esquerda, do PCdoB ao PT, ao mesmo tempo em que importamos as críticas à chamada “sociedade de consumo”, a linha auxiliar americana de crítica à propriedade privada. Há um debate positivo, ligado ao excesso de compras e à sustentabilidade. Há outra crítica, no entanto, que decorre puramente de uma espécie de preconceito contra essas relações que foram livremente estabelecidas em nossa sociedade, as relações de consumo.

Em uma sociedade democrática, as diferenças de opinião são sempre saudáveis. Fato lamentável é não termos dado importância aos autores que apontavam outros caminhos por todo esse tempo. A preponderância dos intelectuais de esquerda nos debates públicos, que empunhavam uma suposta superioridade moral por estarem contra a “injustiça social”, pode ter nos limitado como sociedade.

Infelizmente, junto com a recuperação de figuras históricas icônicas, como Churchill, e com o resgate de autores essenciais do século XX, como Raymond Aron e Roger Scruton, há uma linha radical que se identifica com a direita, como o movimento Alt-right americano ou o bolsonarismo no Brasil, que reforçam esse dualismo, estreitam a discussão e podem continuar obstando um debate real entre os que têm opinião diferente.

Nos EUA grupos que perceberam esse acirramento buscam mediar os conflitos, criando ambientes e regras propícios para que os debates se deem em torno de ideias, em que o respeito ao oponente seja incentivado, em que a ênfase deixe de estar nas grandes questões da humanidade, sendo substituída pela discussão dos problemas locais de cada comunidade.

No Brasil, penso que os candidatos e grupos que vierem a apostar na divisão da sociedade, na falta de diálogo ou nos ataques pessoais devem ser evitados. Já levamos essa divisão muito longe. O único caminho para nos restabelecermos como sociedade é pelo diálogo, inclusive e principalmente com aquele que pensa diferente. É hora de deixarmos nossas bolhas, não dar muita atenções aos trollers e criar espaços para a discussão. Vamos tentar?

Gustavo Theodoro

 

Das Formas de Censura

redes briga

Na ditadura militar brasileira, a censura à liberdade de expressão se dava da maneira clássica. Censores servidores públicos avaliavam obras de arte, músicas, livros e jornais. Notícias ligadas à tortura e aos demais abusos cometidos pela ditadura não podiam ser publicadas. Muitas vezes com minutos de antecedência para o fechamento do jornal uma notícia era censurada. Alguns jornais passaram a publicar receitas ou poesias em seu lugar, procurando informar o seu público pelo menos da existência de algum tipo de censura.

Esse tipo de censura nunca deve ter fim. A Polônia na última semana aprovou lei que impede que, em qualquer publicação, os poloneses sejam de alguma forma relacionados ao Holocausto. Os campos terão que ser sempre Nazistas e os poloneses devem figurar como vítimas. O anti-semitismo polonês existente naquele período da história não poderá ser citado. Estabelecer qualquer tipo de relação entre o Holocausto e os poloneses agora é crime.

A Rússia proibiu o livro Berlim, de Antony Beevor, onde foi relatado o estupro das mulheres alemãs pelo exército vermelho nos últimos dias da Segunda Guerra. Apesar de se tratar de fato muito bem documentado, os governantes russos acham que essa história não deve ser contada. Trata-se, na visão deles, de uma forma de “proteger o povo” em uma espécie de “censura para o bem”.

A Ucrânia também proibiu outro livro desse mesmo autor. O livro é Stalingrado e conta de forma minuciosa a história dessa batalha decisiva para a Segunda Guerra. Eis que uma passagem ainda na parte inicial do livro o assassinato de 91 crianças judias por oficiais da SS ucraniana é contado em detalhes. Apesar de o fato ser bem documentado por cartas, relatos e ofícios da época, os governantes negam a colaboração de ucranianos nesse massacre. Para garantir que a história seja contado do jeito certo, proibiram a circulação do livro.

Há, no entanto, formas veladas de censura. Uma delas, bem comum em qualquer lugar do mundo, é utilizar o judiciário para limitar a atuação de quem utiliza a liberdade de expressão em sua forma mais plena. Se alguém escreve verdades desagradáveis e incômodas, em pouco tempo o autor terá que passar a lidar com advogados e tribunais. Contra o servidor público as formas de se obter o silêncio são ainda mais abrangentes.

Em um mundo dividido como este que nós vivemos, em que os sentimentos identitários foram potencializados e o sentido de grupo foi trabalhado, a censura se dá de modos ainda mais sutis. É comum ouvirmos que transitar nas redes sociais, especialmente debatendo política, é um exercício de masoquismo, visto que há pouco lugar para a ponderação e o aprofundamento das discussões. Qualquer polêmica que se entre pode ter como resultado ataques pessoais e xingamentos.

Com isso, pessoas ponderadas ou outras sem espírito para o conflito costumam se afastar das discussões. Tornando-se mais agudo o fenômeno, dois ou três grupos de extremistas, ainda que minoritários, podem monopolizar o debate, dando a impressão de que o mundo é uma divisão dual que pode ser explicado a partir de um eterno “nós contra eles”.

Aqueles que oscilam suas posições de acordo com o tema e não de acordo com o grupo a que pertencem passam também a ser hostilizados, retratados de forma depreciativa como “isentões” ou algo do gênero, como se os que não participassem do jogo de dois lados que eles criaram fossem mais perigosos do que os adversários naturais. Como resultado disso calam-se importantes vozes que poderiam moderar os debates e promover o entendimento entre as pessoas.

Resta-nos compreender esse processo, identificar e denunciar aqueles que praticam essa forma de censura. Não ter opinião aguda, pronta, imediata e certeira sobre os acontecimentos do mundo é, para mim, regra, e não exceção. Lembro de Merleau-Ponty, editor de um jornal da resistência durante os duros anos de ocupação Nazista, mas que nos anos seguintes, também de imensa divisão, disse que “não queria mais se engajar em tudo o que se passava, como se fosse um teste moral”.

É isso. Liberdade que sobrevive à censura é aquela que lhe garante escrever quando assim desejar, da forma que desejar, e se calar sobre outros assuntos, mesmo que ruidosos e geradores de grande interesse da opinião pública. O que precisamos recuperar neste pouquíssimo tempo de existência de redes sociais é nossa liberdade de expressar o pensamento, que tem sido sutilmente – as vezes nem tanto – limitada. Pois o que prometia enriquecer o mundo agora parece o estar apequenando.

Gustavo Theodoro