É desconcertante constatar que cidadãos de países em que se verifica corrupção sistêmica, ao visitarem países de maior grau civilizatório, tendem a se comportar de acordo com as regras do país visitado, respeitando os limites de velocidade, descartando o lixo adequadamente, aguardando nas filas e assim por diante. Logo que retornam a seus países, no entanto, voltam a jogar lixo no chão, furar filas e tentar levar vantagem onde puderem.
A pergunta que se coloca é por que a pessoa que tem capacidade de diferenciar comportamentos opta pela desonestidade em um ambiente e pela honestidade em outro. Indaga-se ainda que medidas podem ser tomadas para que a tendência à desonestidade, presente em quase todo o ser humano, possa ser moderada.
Com o advento da modernidade e a declarada “morte de Deus”, a filosofia moral viu-se às voltas com a ausência de balizas firmes para o comportamento humano. Se tudo é permitido, seria necessário estabelecer um contrato entre as pessoas para que a vida em sociedade se tornasse aceitável. Em um Estado-Nação, no entanto, esse contrato nunca é assinado, ele é tácito. A civilização nos precede e provavelmente continuará existindo diante da nossa ausência. Cumprir o contrato social, na sua totalidade, não passa de uma escolha.
Nos países em que a miséria é grande, onde a injustiça é muito evidente, a adesão ao contrato social é fraca e parcial. Disse Saint-Just que “caso se deseje fundar uma república, primeiro se deve tirar o povo da condição de miséria que o corrompe. Não há virtudes políticas sem orgulho e ninguém pode se orgulhar quando está na indigência.”
A pessoa que visita outros países, no entanto, normalmente pertence ao segmento mais educado da sociedade, à elite econômica, que percebe a injustiça social de seu país de origem de um lugar privilegiado. A explicação de Saint-Just não se aplica a ela.
Kant, diante das dificuldade impostas pelo seu tempo, utilizou a razão como lastro para a moralidade. Os sentidos nos dão conhecimento parcial da coisas tais como elas são. A liberdade dos regimes republicanos nos leva à necessidade de pensar. O pensamento, segundo Kant, nos levaria a identificar o “valor moral” das ações, de modo que a “vontade da razão” passaria a ser identificada com dever moral. “Quem quer os fins quer os meios“. Isso vai além do que propôs Rousseau: “o povo, submisso às leis, deve ser autor delas“. Os imperativos categóricos decorrem do poder do pensamento, que identifica a conduta que “eu possa também querer que minha máxima se torne uma lei universal“.
Isso é muito mais do que seguir um contrato, é escrever um contrato unilateral, fundado no valor moral das ações, em que não há prevalência dos fins sobre os meios. É um nível tão alto de rigor moral que os filósofos modernos buscam moderar essas teses, de modo que seja possível conciliar o imperativo categórico com, por exemplo, a segurança pessoal, mas também com a natureza precária e ambivalente de nossas vidas.
A teoria econômica tende a enxergar o homem como o indivíduo sempre pronto a maximizar seus ganhos. Se há vantagem no comportamento desonesto, sendo o risco pequeno e o ganho alto, a previsão dessa teoria é de que a desonestidade seria predominante. Essa visão unidimensional leva a teses de que o único remédio para esse mal seria aumentar o risco da desonestidade ser observada e a magnitude da punição.
O fracasso dessas políticas, quando aplicadas isoladamente, é evidente. A guerra ao tráfico, o combate ao contrabando de cigarros e até mesmo as estratégias de combate à sonegação fiscal são exemplos disso. A Receita Federal Americana (IRS) aumentou o número de auditorias realizadas no início dos anos 2000, mas o valor sonegado não se alterou; manteve-se em torno de 15%.
Kant pode ter sido excessivamente otimista com relação à racionalidade humana. No entanto, as simplificadoras teses de combate a impunidade e aumento de penas, ainda que no Brasil a impunidade seja alta, não darão conta da tarefa de produzirmos um ambiente de maior honestidade e, consequentemente, respeito ao próximo. Uma das discussões interessantes do século – ah, esses teóricos! – diziam respeito à diferenciação entre cultura e civilização. Podemos ser capazes de aprender regras sociais, comportarmo-nos bem à mesa, ou seja, sermos civilizados, e ainda assim não sermos capazes de criarmos uma sociedade que se pudesse viver em acordo com um “valor moral” nos termos kantianos.
As modernas pesquisas comportamentais revelam que o homem é mais do que um conjunto de interesses próprios. A forma como nos vemos é importante. O auto-engano é um mecanismo de defesa que utilizamos para justificar comportamentos no limite da desonestidade.
“Eu ultrapassei a velocidade permitida para não chegar atrasado ao trabalho”; “Deixei de declarar o imposto porque o Governo não faz uma aplicação adequada dos recursos”; “Não respeitei a fila, pois meu caso era urgente”. São justificativas comuns que se suportam no auto-engano. A curva clássica da desonestidade informa que as pessoas cometem pequenas desonestidades para obterem pequenos prêmios. Há um patamar em que o freio moral é acionado e que, mesmo com o aumento do prêmio, o comportamento desonesto não aumenta. Se o prêmio continua crescendo, o comportamento desonesto, em regra, volta a crescer.
A força que atua no patamar em que o auto-engano não se aplica é a que guarda relação com as teorias morais. É essa força que merece ser estudada.
A literatura apresenta algumas boas sugestões que vão além do aumento da chance de ser pego e das punições. Uma das sugestões está no incremento da educação, que faz reforçar os mecanismos de recompensa internos. Outra tem relação com a identificação dos auto-enganos mais comuns em cada área de atuação. O estabelecimento de códigos de ética e sua rememoração constante – por meio de assinatura de termo de compromissos, por exemplo,- também têm seu papel.
Não é possível prever qual o tempo necessário para tornar um país culturalmente desenvolvido, a ponto de seus cidadãos se sentirem internamente recompensados por suas atitudes corretas. No entanto, um passo importante nessa direção passa pelo reconhecimento da complexidade ligada ao comportamento honesto e pela refutação das teses que nos identificam com o homo economicus. Tornar acessível em linguagem clara temas sobre os quais velhos filósofos já refletiram também pode ajudar. Espero ser capaz de dar pelo menos essa contribuição.
Gustavo Theodoro
Parabéns pela reflexão. Façamos também a nossa parte.