Mês: outubro 2021

O Erro de Kant

Bolsonaro tira máscara de criança

Ouvimos um clamor pela liberdade por parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro sempre que alguma medida sanitária é tomada para preservar a vida das pessoas na pandemia. Na semana passada, vimos os empresários Otávio Fakhoury e Luciano Hang evocarem o direito à liberdade diversas vezes durante seus depoimentos na CPI da pandemia. As medidas de distanciamento social, o direito de receitar e tomar remédios ineficazes, o uso de máscara, o estabelecimento de restrições ao funcionamento do comércio e do serviço, o passaporte sanitário, tudo é combatido com base no mesmo argumento: a defesa da liberdade.

Quase sempre estava implícito nessas manifestações que algum pensador ou alguma tradição respaldava aquela defesa. Liberdade já foi bandeira da esquerda, mas no final do século XX e, especialmente no século XXI, transformou-se em pauta recorrente da direita, em especial do movimento internacionalmente denominado “alt-right”. Parte dessa concepção decorre de um mal-entendido acerca de dois pensadores centrais do século XVIII, Jean Jacques Rousseau e Immanuel Kant.

Rousseau sempre foi um defensor de primeira hora da mais extrema liberdade. Conhecedor das teses de Locke (que avaliava que o homem era mais bom do que mau) e de Hobbes (que tinha avaliação contrária), que, apesar de terem diagnósticos divergentes acerca do ser humano, defendiam, de forma convergente, a existência de um Estado forte, que, se por um lado reduzia a liberdade, por outro traria segurança.

Eram tempos em que a ciência fazia descobertas espetaculares, o movimento dos planetas foi desvendado, leis universais foram estabelecidas, a mecânica newtoniana dava norte para o que a política e as ciências humanas deveriam ser. Rousseau tinha convicção de que o contrato social de Hobbes seria superado por algo mais inovador que preservasse a liberdade individual de todos. A nenhum homem seria solicitada obediência, que lhe roubaria sua própria humanidade, ainda que essa obediência fosse devida a um Estado criado com a aquiescência de todos.

Kant sempre admirou o pensamento de Rousseau. Era um dos poucos autores que sempre mantinha à mão, próximo à sua mesa. Kant era também um aficionado pela liberdade. No curso da Revolução Francesa, ao contrário do conservador Edmund Burke, que lançava seus textos enfáticos denunciando o erro das revoluções, Kant acompanhava com interesse e genuinamente torcia para que esse evento livrasse os homens da necessidade de submissão.

Um homem que vivia sob o jugo da obediência, na visão de Kant, perdia a principal característica da humanidade, equiparava-os aos animais e ao restante da natureza em seus processos contínuos e inevitáveis. Talvez influenciado pelo governo de Frederico, O Grande, que rejeitava, Kant defendia que “um governo paternalista, que trata seus súditos como crianças que não cresceram, é o maior despotismo concebível”.

Na filosofia moral de Kant, o livre-arbítrio é conceito central para o homem responsável. Tendo como pano de fundo o pensamento de Rousseau, influenciado pelo determinismo das outras ciências, Kant acreditava que qualquer pessoa de boa vontade colocada diante de situação que implicava uma escolha, utilizando-se da imaginação necessária a seu conceito de “pensar alargado”, chegaria a uma única conclusão, assim como qualquer outra pessoa de boa vontade. Daí nascem os imperativos categóricos: “Devo portar-me sempre de modo que eu possa também querer que minha máxima se torne uma lei universal.”

Se há um único caminho e ele é o melhor, todo homem responsável ao final “quer” fazer o que “deve”. Para Kant, portanto, era a responsabilidade individual, e não leis, proibições e obediências, que nos levaria à civilização.

Tal como na Física, em que todos que medem uma velocidade encontram o mesmo resultado (desconsiderem a teoria da relatividade), Kant acreditava que todo ser humano tinha condições de pensar por si mesmo e que o fruto desse pensamento resultaria na melhor escolha.  Um grupo de pessoas que assumem suas responsabilidades e fazem o que é certo teria como consequência uma sociedade civilizada.

A teoria de Kant é alvo de muitas críticas e controvérsias, nunca por inconsistência em seu pensamento, mas por falta de aprofundamento em alguns pontos críticos de sua filosofia.  O equívoco do filósofo de Königsberg foi ter imaginado que haveria um momento na história da Humanidade em que a sociedade seria composta apenas de pessoas responsáveis e de boa vontade que nos levariam à extinção de qualquer tipo de autoridade. Todos seguiriam o melhor caminho a partir de seus próprios pensamentos. O comportamento dos bolsonaristas nesses tempos de pandemia é demonstração empírica do erro de Kant.

Gustavo Theodoro

Charge de Claudio Mor @MORtoonOficial