Mês: fevereiro 2016

Os Donos do Poder

FHC e Lula

Eu sua famosa obra, Raymundo Faoro dizia que “o poder – a soberania nominalmente popular – tem donos que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre.” Muitos políticos ainda hoje se consideram donos da nação e, como tal, portam-se como se estivessem acima das leis.

Nos últimos dias fomos bombardeados com notícias envolvendo dois ex-Presidentes da República, que disputam descrições positivas de seus governos na história, Lula e FHC. Independentemente da qualidade de seus governos, parece que ambos se comportaram como a elite descrita por Raymundo Faoro.

Interessante que, para quem participa das polarizadas discussões envolvendo esses políticos, percebe-se claramente como as paixões comandam esses debates. Para petistas e simpatizantes, os fatos envolvendo FHC são gravíssimos, denotam falhas em seu caráter, sendo evidente seu comportamento antiético. Para os tucanos e antipetistas, as palavras pouco se diferem, bastando substituir PSDB por PT e FHC por Lula.

Particularmente, não simpatizo com nenhum dos dois times. Sob esse ângulo, penso que tanto Lula quanto FHC cometeram impropriedades, podendo até ter cometido crimes. O comportamento denota tráfico de influência, compadrio e acordo de bastidores, práticas claramente à margem dos princípios republicanos.

FHC teve um relacionamento com uma jornalista da Rede Globo. Em um belo acordo de cavalheiros, Miriam Dutra foi transferida para a Europa, onde permaneceu assalariada da Globo até 2015, apesar de ter trabalhado muito pouco neste período. Mas não foi só isso: durante o mandato de FHC, a jornalista começou a receber recursos de uma empresa sediada nas Ilhas Cayman. Só ouço notícias envolvendo esse paraíso fiscal quando se pretende esconder a origem de recursos. Essa empresa de Cayman pagou por anos salário em dólar para suposta mãe do filho de FHC.

A imprensa não noticiou o caso, apesar de o assunto ter sido do conhecimento de todos os jornalistas. Noblat disse que é favorável à divulgação de fatos envolvendo a vida privada de políticos em uma coluna assinada em defesa das Organizações Globo. Só faltou explicar os motivos pelos quais ele não seguiu a sua linha de pensar, evitando tratar desse assunto por todo esse tempo. Tudo isso indica que os que cercam o poder se dobram às necessidades dele, retirando empecilhos do caminho, prestando assistência e fazendo favores.

Apesar de o caso Miriam Dutra revelar práticas de compadrio muito evidentes, nas hostes tucanas o que percebi foram referências ao fato de se tratar da “vida particular” de pessoas, que não deveríamos nos envolver, com referências ainda ao possível envolvimento de membros do PT na divulgação dos acontecimentos neste momento. Para fechar o caso, ainda foi divulgado que José Serra deu emprego público, sem necessidade de comparecimento, à irmã de Miriam Dutra.

O caso Lula também retrata situações descritas por Faoro. A Bancoop quebrou. A OAS assumiu parte dos imóveis. Os clientes da cooperativa tiveram muitas dificuldades na negociação com a OAS, sendo-lhes muito custoso. Com Lula foi diferente. Seu apartamento foi terminado, com todo o revestimento trocado. Um elevador privativo foi instalado. Quando O Globo descobriu que Lula teria seu apartamento da Bancoop entregue, enquanto a maioria dos clientes perdeu os recursos, Lula passou a negar que fosse dono do apartamento, apesar de a obra ter sido supervisionada por sua família.

O caso do sítio do Lula revela como as empreiteiras se apressaram a dar conforto para a família do líder político. A Odebrecht, que usualmente não atua na área de reforma de residências, rapidamente colocou o imóvel no nível presidencial. A obra foi paga em dinheiro vivo (procedimento comum dos que têm interesse de esconder a origem dos recursos). A mesma OAS adquiriu móveis para os dois imóveis na mesma loja, a Kitchens, uma das mais caras lojas cozinhas planejadas do país. Uma operadora tratou de instalar uma antena de celular perto do sítio, para suprir a necessidade dos membros da família presidencial.

Os simpatizantes do PT procuraram relacionar a divulgação das notícias dos favores prestados pelas empreiteiras a preconceito de classe. Não sabia que a sociedade brasileira era dada a preconceito contra os donos do poder.

Apesar da movimentação das torcidas, as notícias até aqui divulgadas não deixam uma imagem muito boa das duas lideranças políticas. Favores de empreiteiras nunca são gratuitos. E políticos devem rejeitar qualquer tipo de favor. Parece que resolveram aceitar favores e não pensar muito nisso. Agora resta inventar versões razoavelmente consistentes para tentar preservar o pouco de credibilidade que lhes restou. De mim, esses donos do poder receberão apenas a minha condenação.

Gustavo Theodoro

O Espaço da Política

EUA Cuba

Marx previu que a crise do capitalismo levaria a sociedade à ditadura do proletariado e, a seguir, pelo socialismo, um mundo igual onde não haveria mais espaço para a política, que seria substituída pela “mera administração das coisas”.

Apesar de o prognóstico de Marx ter se mostrado equivocado, de certa forma o espaço para atuação política se reduziu. O paradoxo previsto por Tocqueville se confirmou: o fim da aristocracia, com a criação de um espaço público onde todos podem participar, criou condições também para que poucos efetivamente se envolvam nas questões públicas.

A evolução das burocracias também limitou a abrangência da política, pelo menos a da política interna. Talvez apenas nas relações internacionais a política tenha conseguido manter seu status.

Por isso é tão interessante, para quem gosta de política, observar a reaproximação entre os EUA e Cuba. Tratou-se de ato de vontade dos governantes, que tinham a seu dispor esse caminho, podendo percorrê-lo ou não. É provável que o regime cubano seja destruído com essa aproximação. Já vimos esse filme com a queda do muro de Berlim. Já foi superada a discussão sobre a possibilidade da transição para o socialismo democrático, tema tão comum aos socialistas ocidentais dos anos 1980.

O reatamento das relações, quando levar à abertura comercial, aumentará a pressão para reformas no sistema político cubano. O turismo levará estrangeiros, haverá mais acesso aos bens de consumo e à informação. A pressão da sociedade cubana aumentará. E não era necessário que nada disso ocorresse. Esse fato novo só ocorreu neste momento por decisão dos líderes políticos, que “iniciaram” um diálogo por ato de vontade, exercendo a liberdade que é característica da política.

Os gregos e romanos tinham a política em alta conta. Mas dificilmente eles relacionariam o termo “política” à eleição pela liderança do PMDB na Câmara ou às disputas envolvendo Renan Calheiros e Eduardo Cunha. Já o reatamento das relações EUA e Cuba é evidência de nossa milenar herança política.

Gustavo TheodoroO

A Marca do Líder

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Imaginamos que as empresas privadas são ilhas da gestão moderna, atentas à ciência comportamental, locais onde os gestores procuram extrair o melhor de cada pessoa, de modo a produzir um ambiente que propicie o desenvolvimento individual e da empresa. Seu contraponto seria o serviço público, onde a gestão burocrática, hierárquica e sem imaginação criaria ineficiência e desperdício.

Não é necessário muito esforço para verificarmos que a iniciativa privada, mesmo as empresas mais destacadas, estão repletas de exemplos de líderes controladores, irascíveis e personalistas. Steve Jobs é um típico caso de gestor controverso, idolatrado pela mídia e pelos consumidores em geral, mas que encontrava poucos defensores entre os que já trabalharam com ele.

Mas há exemplos ainda mais interessantes. Joe Cassano era CEO da AIG LP, área da seguradora responsável pelos seguros de títulos hipotecários. Cassano exigia obediência total. Gestão para ele era sinônimo de controle.

Um negociante londrino lembrou-se do estilo de Cassano: “A AIG FP tornou-se uma ditadura. Joe intimidava todo mundo e tentava compensar isso com enormes somas de dinheiro”.

Um ex-empregado da AIG disse que “o nível de medo era tão alto que, quando tínhamos essas reuniões matinais, apresentávamos o que fazíamos de modo a não o aborrecer. Se você de alguma maneira criticasse a organização, era como abrir as portas do inferno”

Em comparação com a antiga AIG, outro negociante disse: “Na administração de Joe, o debate e a discussão que eram comuns na época de Tom Savage (CEO anterior) acabaram. ”

A maioria dos empregados seguia a cartilha da empresa e aprendeu a lidar com o chefe: “A maneira de lidar com Joe era sempre começar dizendo “você está certo, Joe””. Ele valorizava a lealdade e a obediência e compensava o péssimo ambiente com altos salários.

Gene Park, funcionário da AIG LP, começou em 2005 a estudar os seguros que a AIG havia feito na área de títulos hipotecários. Ele descobriu o que alguns investidores que estavam apostando contra o mercado já haviam descoberto: empréstimos com baixíssima chance de recuperação haviam sido transformados em títulos que as agências de risco continuavam avaliando positivamente. Um pequeno grupo de investidores desvendou essa falha e passou a comprar proteção contra esses títulos (CDS). Como o nível de exposição era muito alto, os grandes bancos americanos repassaram esse risco para a AIG. Esses investidores estavam apostando contra o mercado. Ganhariam dinheiro se o mercado de hipotecas americano quebrasse. O que Gene Park descobriu é que parte dos grandes bancos transferiu esse risco para as seguradoras. E que a AIG havia embarcado de cabeça nessa onda.

Gene Park foi a uma reunião com Joe Cassano e expôs o problema. Cassano se mostrou muito contrariado e, ao término de reunião, chamou Park para uma conversa particular e passou-lhe uma terrível reprimenda. Esse tipo de crítica jamais deveria se repetir.

Apesar de ter interrompido a contratação de novos seguros envolvendo títulos hipotecários a partir de meados de 2006, a carteira de 2005 não foi desfeita. Quando veio a crise de 2007 e particularmente a crash de 2008, a AIG quebrou justamente devido ao seguro de U$ 50 bilhões em títulos subprime. Dificilmente a AIG quebraria se Joe Cassano não estivesse no controle da divisão de títulos subprime da AIG. Um único gestor antiquado pode significar o fim de uma empresa.

Marissa Meyer em 2012 era a queridinha do Google. A Yahoo vinha de dificuldades de sobreviver em tempos muita concorrência e resolveu contratá-la como CEO. Sua primeira medida foi extinguir o Home Office, símbolo das empresas do Vale do Silício. A produtividade, como era de se esperar, caiu.

Marissa detém um estilo de gestão centralizador e personalista. Nos últimos tempos tem sido comparada inclusiva à Evita Peron. Sobre o estilo de gestão de Marissa, um colaborador declarou recentemente: “Marissa é o tipo de chefe que faz com que você sinta a estar decepcionando o tempo todo, por isso sempre acho que estou a ponto de ser demitido”.

O clima no Yahoo está tão ruim que um terço dos funcionários se demitiram nos últimos 12 meses. As estratégias empresariais de Marissa não deram resultado. Não fosse a participação na chinesa Alibaba, seria mais evidente a queda nos lucros e na participação da empresa. Pesquisa realizada recentemente entre os funcionários remanescentes da empresa revelou que apenas 34% acreditam que as perspectivas para a empresa estejam melhorando. Pesquisa idêntica realizada no Twitter e no Google revelaram índices muito superiores, de 61% e 77%, respectivamente.

Acreditar que gestão é cobrança e manutenção da hierarquia podia ser admissível há algumas décadas. Com a informação que se têm nos dias atuais, chega a ser difícil compreender como grandes empresas, muitas centenárias, algumas inovadoras, mantém em seu comando gestores ultrapassados.

Talvez a grande diferença entre o setor público e o setor privado é que o mau gestor privado, em clima concorrencial, inevitavelmente termina por levar sua empresa à redução de participação de mercado ou mesmo à sua extinção, como foi o caso da AIG. O mau gestor público produz resultados muito ruins, mas como não há competição e falência, a falsificação de indicadores – gaming – pode manter a má gestão por muitos anos.

Por isso se faz ainda mais necessário que, no serviço público, a estabilidade do servidor seja utilizada não para se aproveitar do cargo, eximindo-se de tarefas, mas utilizando-a para buscar um ambiente de trabalho que aproxime a organização do interesse público. Não é difícil identificar o mau gestor ou as organizações que funcionam mal. O que cabe a cada um é atuar para que gestores personalistas e controladores não permaneçam em suas funções. Aos que pretendem, um dia, assumir um cargo de gestão, cabe estudar o que a academia tem a dizer sobre o assunto. É uma das áreas que mais produziram resultados palpáveis nas últimas duas décadas. Fica a dica.

Gustavo Theodoro

A Ética dos Mercados

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O mercado, quando é livre, cria suas anomalias e as corrige por meio de desvalorizações abruptas e, geralmente, descontroladas. A febre das tulipas na Holanda do século XVII ilustra bem o fenômeno.

Tulipas eram flores raras, de longa maturação, cujo desenvolvimento se dava em até 12 anos. O mercado girava em torno dos bulbos das tulipas. Devido ao tempo de maturação das tulipas, as tulipas foram substituídas por contratos. Especuladores passaram a comprar e vender o direito sobre as tulipas quando desabrochassem. Esse é talvez o primeiro exemplo de contrato futuro, fundado na expectativa de valorização do ativo (no caso, as tulipas).

Esses contratos chegaram a Londres e a Paris. Os preços desses contratos subiram exponencialmente até que um comerciante resolveu não exercer o direito da compra da tulipa no vencimento do contrato. Subitamente, a desconfiança com o preço exorbitante do bulbo se espalhou e o valor das tulipas chegou a um centésimo do valor do pico. O estouro da bolha provocou recessão e desconfiança quanto a esse tipo de investimento.

No século XX assistimos ao amadurecimento dos mercados, principalmente a partir da crise de 1929. Mas não se pode dizer que tenhamos, de fato, aprendido algo. Nos acostumamos a duvidar da ética dos políticos, principalmente depois do que escreveu Maquiavel, mas ingenuamente acreditamos nas instituições de controle criadas pelo próprio mercado.

O filme concorrente ao Oscar The Big Short – A Grande Aposta – ajuda a contar como a crise econômica de 2008 teve início com a criatividade dos operadores de mercado, mas foi o absoluto desprezo pelo comportamento ético que atrasou as avaliações e levou os bancos e seguradoras a uma queda ainda maior.

O milagre da segunda hipoteca por quem não podia sequer pagar a primeira foi percebido por muitos. As agências de avaliação de risco sabiam que títulos de boa qualidade estavam misturados a títulos cujo pagamento dependia da contínua valorização dos imóveis. O esquema de pirâmides, proibido na maioria dos países há quase um século, estava de volta. Mas ainda assim as agências de risco continuavam atribuindo nota máxima aos títulos hipotecários mistos, os subprimes.

Quando as duas empresas autorizadas a conceder empréstimos imobiliários, a Fannie Mae e Freddie Mac, empresas de capital aberto mas garantidas pelo governo americano, começaram, ainda em 2007, a apresentar dificuldades, uma parte dos analistas teve certeza de que a crise do subprime estava a caminho. Naquele momento, uns poucos abnegados gestores já estavam apostando muito dinheiro contra os títulos hipotecários.

Ocorre que os bancos, a essa altura, estavam sentados em bilhões de dólares de títulos impagáveis. Ninguém queria – nem podia – reconhecer o prejuízo. Assim, apesar de evidente a crise, os títulos continuaram subindo e as agências de risco não rebaixaram a nota dos bancos e seguradoras.

Entre a ética e o dinheiro, os que operam no mercado raramente se questionam: o dinheiro sempre ganha. Os bancos pressionaram as agências de risco, que mantiveram baixo o risco das hipotecas. Ao invés de ajustar, o sistema deu corda à exuberância irracional, aumentando sua disfuncionalidade. Nem na quebra do Bear Stearns, no início de 2008, o risco foi admitido. Foi necessário que o centenário Lehman Brothers quebrasse, levasse junto a AIG e centenas de outras financeiras e seguradoras, para que a crise fosse reconhecida.

Só então aventou-se o risco de quebra dos maiores bancos americanos, em uma crise que se alastrou para os sistemas bancários de todo mundo. Foi quando os Estados foram chamados a cobrir o rombo.

Desregulado, livre, criativo, quando vencido o mercado foi em busca do estado. Sim, o mesmo Estado que cuja intervenção era combatida, cuja forma de gestão era considera ultrapassada, o mal necessário foi convertido em solução para os problemas. “É necessário proteger os que donos de hipotecas”, passaram a dizer os banqueiros.

Por ser o fiador do mercado, entendo que seja dever dos estados estabelecer regras para o seu funcionamento. O estado interventor é tido por corrupto e ineficiente. Vimos no escândalo da Enron que as empresas de auditoria independente podem se corromper. Na crise dos subprime, vimos que as agências de classificação de riscos também têm seus interesses.

Assim, quando virem por aí a defesa de que o Estado não deve estabelecer regras e controles, pensem consigo próprios: mas quem exercerá essa tarefa? O mercado ou os empresários não são necessariamente mais éticos, tal como nos informa o preconceito que grassa por aqui, devido à presença do Estado em muitos setores da economia. Pelo contrário: por ter outros objetivos, aqueles que atuam em nome do Estado costumam agir com muito maior compromisso com o interesse público do que aqueles que têm por objetivo principal fazer dinheiro. É grande a corrupção nos órgãos de Estado. Mas ela é continuamente denunciada e combatida. Já o escândalo financeiro deste século, passados poucos anos, já está sendo visto como mero ajuste cíclico da economia. E quase ninguém foi punido.

Gustavo Theodoro