Eu sua famosa obra, Raymundo Faoro dizia que “o poder – a soberania nominalmente popular – tem donos que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre.” Muitos políticos ainda hoje se consideram donos da nação e, como tal, portam-se como se estivessem acima das leis.
Nos últimos dias fomos bombardeados com notícias envolvendo dois ex-Presidentes da República, que disputam descrições positivas de seus governos na história, Lula e FHC. Independentemente da qualidade de seus governos, parece que ambos se comportaram como a elite descrita por Raymundo Faoro.
Interessante que, para quem participa das polarizadas discussões envolvendo esses políticos, percebe-se claramente como as paixões comandam esses debates. Para petistas e simpatizantes, os fatos envolvendo FHC são gravíssimos, denotam falhas em seu caráter, sendo evidente seu comportamento antiético. Para os tucanos e antipetistas, as palavras pouco se diferem, bastando substituir PSDB por PT e FHC por Lula.
Particularmente, não simpatizo com nenhum dos dois times. Sob esse ângulo, penso que tanto Lula quanto FHC cometeram impropriedades, podendo até ter cometido crimes. O comportamento denota tráfico de influência, compadrio e acordo de bastidores, práticas claramente à margem dos princípios republicanos.
FHC teve um relacionamento com uma jornalista da Rede Globo. Em um belo acordo de cavalheiros, Miriam Dutra foi transferida para a Europa, onde permaneceu assalariada da Globo até 2015, apesar de ter trabalhado muito pouco neste período. Mas não foi só isso: durante o mandato de FHC, a jornalista começou a receber recursos de uma empresa sediada nas Ilhas Cayman. Só ouço notícias envolvendo esse paraíso fiscal quando se pretende esconder a origem de recursos. Essa empresa de Cayman pagou por anos salário em dólar para suposta mãe do filho de FHC.
A imprensa não noticiou o caso, apesar de o assunto ter sido do conhecimento de todos os jornalistas. Noblat disse que é favorável à divulgação de fatos envolvendo a vida privada de políticos em uma coluna assinada em defesa das Organizações Globo. Só faltou explicar os motivos pelos quais ele não seguiu a sua linha de pensar, evitando tratar desse assunto por todo esse tempo. Tudo isso indica que os que cercam o poder se dobram às necessidades dele, retirando empecilhos do caminho, prestando assistência e fazendo favores.
Apesar de o caso Miriam Dutra revelar práticas de compadrio muito evidentes, nas hostes tucanas o que percebi foram referências ao fato de se tratar da “vida particular” de pessoas, que não deveríamos nos envolver, com referências ainda ao possível envolvimento de membros do PT na divulgação dos acontecimentos neste momento. Para fechar o caso, ainda foi divulgado que José Serra deu emprego público, sem necessidade de comparecimento, à irmã de Miriam Dutra.
O caso Lula também retrata situações descritas por Faoro. A Bancoop quebrou. A OAS assumiu parte dos imóveis. Os clientes da cooperativa tiveram muitas dificuldades na negociação com a OAS, sendo-lhes muito custoso. Com Lula foi diferente. Seu apartamento foi terminado, com todo o revestimento trocado. Um elevador privativo foi instalado. Quando O Globo descobriu que Lula teria seu apartamento da Bancoop entregue, enquanto a maioria dos clientes perdeu os recursos, Lula passou a negar que fosse dono do apartamento, apesar de a obra ter sido supervisionada por sua família.
O caso do sítio do Lula revela como as empreiteiras se apressaram a dar conforto para a família do líder político. A Odebrecht, que usualmente não atua na área de reforma de residências, rapidamente colocou o imóvel no nível presidencial. A obra foi paga em dinheiro vivo (procedimento comum dos que têm interesse de esconder a origem dos recursos). A mesma OAS adquiriu móveis para os dois imóveis na mesma loja, a Kitchens, uma das mais caras lojas cozinhas planejadas do país. Uma operadora tratou de instalar uma antena de celular perto do sítio, para suprir a necessidade dos membros da família presidencial.
Os simpatizantes do PT procuraram relacionar a divulgação das notícias dos favores prestados pelas empreiteiras a preconceito de classe. Não sabia que a sociedade brasileira era dada a preconceito contra os donos do poder.
Apesar da movimentação das torcidas, as notícias até aqui divulgadas não deixam uma imagem muito boa das duas lideranças políticas. Favores de empreiteiras nunca são gratuitos. E políticos devem rejeitar qualquer tipo de favor. Parece que resolveram aceitar favores e não pensar muito nisso. Agora resta inventar versões razoavelmente consistentes para tentar preservar o pouco de credibilidade que lhes restou. De mim, esses donos do poder receberão apenas a minha condenação.
Gustavo Theodoro