Em tempos de guerra, a primeira vítima é a verdade. Ocorre que a humanidade parece sempre estar em guerra, visto que a mentira e a manipulação raramente deixam de ser observadas. Em qualquer período histórico que se escolha, a verdade teve imenso trabalho para vir à luz.
Muito disso de deve aos que tendem a aderir a pessoas ou ideias e, ao invés de aplicar seu julgamento com independência, passam a dispor de sua razão, sua energia e sua inteligência para defender um dos lados da polêmica, mesmo que, para tanto, seja necessário abrir mão da lógica e da coerência, ou, em outras palavras, de sua própria razão.
Voltando os olhos para o passado, percebemos como, em tempos de grande divisão, poucos foram os que deixaram de sucumbir às opiniões que os cercavam ou aderiram a caminhos questionáveis. Heidegger, o grande filósofo de Ser e Tempo, raramente deixa de ter lembrada sua breve adesão ao Nazismo. Sartre, com sua grande capacidade de pensar e escrever, parece nunca ter tomado boa decisão no campo política, apoiando o Stalinismo em seus piores momentos, assim como Mao, para depois desfilar com Fidel, dentre outros. Sua lista de más escolhas não é pequena.
O século XX é repleto de exemplos de situações extremas que levaram intelectuais a relevar fatos para manterem suas crenças. Stálin tem seus defensores até nos dias atuais, mesmo com as comprovações do holocausto ucraniano pela fome, dos assassinatos em massa de oficiais poloneses, dos julgamentos forjados, dentre outras atrocidades cometidas pelo ditador. O paralelo no Brasil, ainda que fornecido em tintas menos vivas, pode ser tratado a partir da análise dos governos de esquerda dos últimos anos.
Havia indícios de que o Governo Lula não seria regido pela ética. Já em 2003, houve uma corrida de empresários tentando financiar um dos filhos do Presidente. Daniel Dantas injetou dinheiro na Gamecorp, mas foi uma companhia telefônica que fez os lances mais altos. Os fatos já estavam lá, noticiados à época. Alguns levantaram sobrancelhas. Mas a maioria relevou os maus indícios.
Em 2005, no mensalão, Duda Mendonça reconheceu que recebeu milhões de dólares em paraísos fiscais. Parlamentares foram comprados para votar com o Governo. De lá para cá, a número de provas dessa falta de comprometimento ético só fez aumentar. E mesmo assim, nossos intelectuais, assim como os intelectuais europeus da época da guerra fria, recusaram-se a referendar as críticas. Pelo contrário, comportamento ético, assim como no período stalinista, passou a ser descrito como “moralidade burguesa”.
Os freios mentais que deságuam nesse comportamento são bem conhecidos. Primeiro, são esgrimidos os argumentos mais elementares, de que criticar o lado em que se está favorece o outro, como se o mundo fosse assim, dual e simples. “Fiquemos quietos, renunciemos a nossos parâmetros éticos, pois senão a direita volta.” Depois, aparecem as tentativas de racionalização, envolvendo ideias de igualdade, crescimento e desigualdade social. Na prática, são argumentos equivalentes àqueles menos elaborados: “ele rouba, mas faz”.
Fazer críticas a questões centrais implica desfazer os próprios laços sociais que sustentam esses intelectuais. Todos aqueles por quem o intelectual tem estima estão deste lado. A frase de Hemingway “Quem estará nas trincheiras ao teu lado? ‐ E isso importa? ‐ Mais do que a própria guerra” é constantemente ecoada, sem que cada um perceba o quanto isso revela, do quanto se está abrindo mão para permanecer ligado aos seus.
O caminho da ruptura não é alegre e acolhedor, evidentemente. Albert Camus perdeu seus melhores amigos quando rompeu com o stalinismo. Mantendo-se como um pensador de esquerda, não foi aceito em nenhum círculo. George Orwell jamais abandonou a esquerda. Mas o testemunho dele dos acontecimentos na Guerra Civil Espanhola, em que os comunistas sabotaram o movimento republicano, os levaram a questionar o totalitarismo soviético.
Apesar de sua formação clássica, na esnobe Eton, de sua origem abastada, Orwell jamais se deixou corromper. O período na Birmânia o levou à abandonar a vida economicamente estável de funcionário da Coroa. Viveu do que escrevia e por toda vida teve dúvidas se teria dinheiro para pagar o jantar. Ao escrever sobre sua experiência na Catalunha, perdeu quase todos os seus amigos na esquerda. Como nunca suportou a superficialidade e a ignorância da elite, nem o autoritarismo fascista, seu isolamento sempre esteve presente.
Esse é o destino que todos tentam evitar, mas é alto o preço intelectual a ser pago. É provável que estejamos testemunhando, aqui no Brasil, uma virada na opinião pública. Gradualmente percebe-se uma literatura de direita disponível nas livrarias, jornais e programas de rádio se oferecem para esse público. Com o Governo Bolsonaro eleito, já se percebe que suas falhas e desvios éticos tendem a ser relevados em nome de se “evitar a volta do PT”. A conferir. Como vimos, é alto o preço da honestidade intelectual. E nem todos estão disposto a pagá-lo.
Gustavo Theodoro
Matias Aires, provavelmente nosso primeiro filósofo brasileiro, publicou sua obra “Reflexões sobre a vaidade dos homens” em 1752 (em simultaneidade com a primeira obra de sua irmã – provavelmente também a primeira romancista deste país). Deixou-nos mais de 160 reflexões sobre esse mal tão benquisto e acalentado. Em sua reflexão de número 122 diz: “É mais fácil sustentar uma opinião má do que escolher uma boa, porque o erro é como um edifício cuja fábrica exterior é composta de uma infinidade de ângulos. Com algum desses encontra o discurso facilmente porque são muitos, em lugar que o acerto é como um ponto fixo no meio de uma esfera. O discurso que anda vagando à roda não vê o ponto, porque este é só um. Do mesmo corpo nasce a sombra que o encobre. São inumeráveis as linhas que se podem lançar de uma circunferência para um centro comum. Alguma linha há de ver-se porque são muitas. e o centro não, porque é único: a superfície do globo impede o poder ver-se a sua concavidade. Ou se há de ver uma coisa ou outra: ambas ao mesmo tempo não pode ser.”
A desonestidade intelectual é das maiores armas de que dispõe a vaidade humana quando levada às últimas consequências. A história atesta isso como muito bem exposto em seu texto, Gustavo. “‘Perigoso’, ‘antidemocrático’ é o absoluto”, assim diz quem afirme ver o subjetivismo em tudo. Esse “subjetivismo universal”, um dos inúmeros pseudônimos de nossa vaidade, e que, na prática, não aceita nada além do que rege o seu próprio subjetivismo, revela-se tão mais perigoso e antidemocrático. “Mas isso também é subjetivo”, dirá o relativista de tudo. Assim não disse Zaratrusta?! Fato é que o ponto, aquele ao centro da esfera, continua lá.
Muito interessante essa citação de Matias Aires, lembrou-me uma citação de Montaigne, que disse: “Se, como acontece com a verdade, a mentira tivesse apenas um rosto, estaríamos em melhor situação. Porque tomaríamos por certo o oposto daquilo que dissesse o mentiroso. Mas o reverso da verdade tem cem mil figuras e um campo indefinido. ” Sobre o relativismo, ele mereceria um texto só para esse assunto. Obrigado pelo comentário.