Mês: junho 2018

Fatos e Versões

O que tomamos como um fenômeno local, a divisão face às opiniões políticas das pessoas, é, na verdade, um fenômeno global. Vozes possivelmente potencializadas pelas redes sociais, cujos clicks e curtidas são vistas sintoma de sucesso, tendem a empurrar a opinião pública para extremos, reduzindo o espaço para o diálogo e aumentando o clima de animosidade entre cidadãos, eleitores, pessoas enfim.

Espanta, no entanto, que sintomas de sociedades totalitárias estejam presentes num mundo tão diferente. Nos tempos do totalitarismo, a verdade era sempre fugidia, as versões mudavam de acordo com as circunstâncias. Lembremos do Regime Soviético: Trotsky passa de líder revolucionário para traidor da revolução em poucos anos. Os fatos antes glorificados passam a ser vistos como sintoma de comportamentos reprováveis.

Lembremos da distopia de George Orwell, seu sufocante mundo controlado de “1984”, cujo regime havia compreendido que “quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado”. Tarefa das mais necessárias em regimes assim é dos responsáveis por reescrever a história, de forma a adaptá-la à conveniência do regime.

No início da guerra fria, os políticos de todo mundo tomaram conhecimento de que uma guerra nuclear poderia por fim à existência humana na terra. Líderes do partido soviético, no entanto, defendiam internamente que um ataque aos EUA colocaria fim apenas no país americano, em clara dissimulação da verdade, o que colocava em risco toda a nossa civiliação.

Esse fenômeno retira dos debates a opinião sobre as coisas, e os próprios fatos passam a estar em questão. Vejam recentemente a questão de Trump e a separação de crianças imigrantes. Nem é necessário tanto esforço para obtermos informações de que a prática existe há mais de uma década nos EUA, mas só nos últimos meses virou efetivamente política de estado. Como a condenação foi geral, os apoiadores de Trump começaram a disseminar que nada havia mudado sobre Trump.

Veja que Trump poderia ter mantido a separação das crianças e dizer que a culpa é da justiça e de quem imigra, ou mesmo tomar para si a ingrata tarefa de defender a medida (isso é política, defender posições). Mas ele preferiu revogar a ordem executiva. Mesmo assim, seus apoiadores seguem disseminando informações de que Obama fazia o mesmo. É certo que havia casos de separação de pais e crianças no Governo Obama, assim como é certo que o número de separações disparou nos últimos meses.

Hannah Arendt via nessa forma de debater uma herança dos tempos de totalitarismo. Escreveu ela lá na década de 1950: “A questão não está nas diferenças de opinião e convicções básicas, nem nas dificuldades concomitantes de se chegar a um acordo, mas na impossibilidade muito mais atemorizante de se estar de acordo quanto aos fatos”.

E testemunhamos os mais diversos exemplos dessas dificuldades, como as divergências sobre a correta qualificação do impeachment de Dilma Rousseff, as diferentes formas de se posicionar sobre o processo que levou à condenação de Lula, sobre a reforma trabalhista – atualizou nossa legislação ou significou o fim da CLT-, o debate sobre a necessidade da reforma da previdência, etc.

Sobre a previdência, há candidatos que negam até mesmo haver problemas, outros criam realidades paralelas, citando dado falso de que a dívida pública consome 51% de nosso orçamento. Ou seja, nem números objetivos sobrevivem a esses tempos. O espaço das opiniões deixa de existir, e com ela também a possibilidade da política.

Marina Silva costuma dizer que nossa capacidade de conciliar é, talvez, o nosso maior ativo, mas ele tem se degradado com o tempo, engolido pelo Zeitgeist. O afastamento dos extremos talvez possa nos levar de volta à possibilidade de nós todos formarmos um país, com opiniões divergentes, com disputa, debates, plebiscitos e votos, mas com posições mais honestas. Não podemos perder de vista que construir uma civilização é muito mais trabalhoso do que destruí-la.

Gustavo Theodoro

 

Em Nome de Quem?

Dizia Roham que “os reis governam os países, e os interesses governam os reis”. Deveria, no entanto, ser natural que o interesse do Presidente da República fosse o desenvolvimento de seu país, assim como o interesse dos sindicatos dos petroleiros fosse a defesa de seus filiados e de sua empresa.

Temer, em plena greve de caminhoneiros (locaute?), que secou os postos de combustíveis do país, resolveu entregar carros (Temer foi à Porto Real-RJ para entregar de veículos aos conselhos tutelares) sem cogitar que essa atividade vincularia os carros à falta de combustíveis para abastecê-los. Na semana seguinte, com a crise ainda em andamento, pegou o avião presidencial – quando estávamos todos sem combustível – para reunir-se em São Paulo com seu advogado, preocupado que estava com o inquérito dos portos, que pode implicá-lo em uma rede de favorecimentos e propinas.

Os sindicatos dos petroleiros viram Severino Cavalcanti exigir diretoria que “fura poço e sai petróleo”, viram Paulo Roberto Costa, Nestor Cerveró e Renato Duque atuarem em favor de partidos políticos, observaram Eduardo Cunha mandando na Petrobras, testemunharam as denúncias de enriquecimento de seus gerentes, viram o valor de mercado da empresa despencar ao mesmo tempo em que a dívida bruta de empresa só crescia. A empresa que faz parte do imaginário popular – o petróleo é nosso – estava ruindo e parecia ser necessário um iminente socorro de nosso combalido Tesouro Nacional.

Não se viu movimento dos sindicatos dos petroleiros. Aliados à CUT e ao PT, chegaram até mesmo condenar a Lava Jato por supostamente estar a serviço de interesses estrangeiros. Nos tempos em que a empresa era espoliada, não houve movimentos fortes em sua defesa.

Analisando o balanço da companhia, percebe-se que o valor de mercado da Petrobras se recuperou entre 2016 e 2018: saiu de R$ 125 bi para R$ 293 bi. O endividamento bruto caiu de R$ 450 bi para R$ 340 bi. A geração de caixa (ebitda) dividida pela dívida bruta foi de 0,055 para 0,247, ou seja, multiplicou quase cinco vezes, revelando grande aumento da capacidade da empresa em pagar suas dívidas (e sobreviver).

O aumento do preço internacional dos combustíveis, num cenário em que se pratica preços de mercado, valoriza a empresa e, consequentemente, seus funcionários. Logo, é no mínimo controversa a convocação de uma greve promovida pelo sindicato dos petroleiros contra tal política de preços. Evidentemente a greve fracassou, mas não deixa de ser notável que um movimento desses seja convocado contra uma política que, em última instância, favorece o trabalhador do setor. Percebe-se claramente, neste episódio, a confusão entre as filiações partidárias das lideranças sindicais e os interesses dos trabalhadores que essas lideranças representam. Os interesses partidários acabaram se sobrepondo.

O Presidente Temer, dividido entre sua falta de autoridade e as preocupações com o avanço da Polícia Federal sobre seus familiares, revelando estatura inferior ao tamanho da crise, acabou por causar um rombo bilionário no orçamento de serviços essenciais à população, criando condições para que a Petrobras regrida ao tempo dos preços administrados.

Evidente que não sou finalístico nem teleológico, não acho que o interesse coletivo deva ser colocado sempre em segundo plano frente aos interesses setoriais. Tampouco creio que o mundo deva ser guiado exclusivamente por interesses. Neste cenário, no entanto, se cada ator desses estivesse mais atento aos papeis que cabem a eles representar, a crise não teria atingido essas proporções. O fim do Governo está dado. Resta saber se Temer pretende renunciar ou se a necessidade do foro privilegiado o manterá agarrado ao cargo. Essa crise nos deu indícios sobre quais interesses prevalecerão.

Gustavo Theodoro