Mês: novembro 2015

O Diabo e o Bom Deus

Obama paz

Uma das melhores obras de Sartre, O Diabo e o Bom Deus, conta a história de um governante que se assemelha ao Diabo, praticando o mal a todo momento. No meio da peça há uma virada e o comportamento adotado passa a ser de fazer o bem a qualquer custo, independentemente do resultado de cada ação. É o princípio kantinano seguido à risca, com o olhar sempre no valor moral do ato em si, sem nenhuma conexão com seu resultado.

Escrito com muita inteligência, resta ao final a dúvida sobre quem afinal era Deus ou o Diabo, tal a quantidade de injustiças e vilanias praticadas. A lição que se tira é que se devemos nos precaver é com os bons, pois dos maus já sabemos o que esperar.

Obama recebeu o prêmio Nobel da Paz em 2009. Na campanha, prometeu acabar com a guerra do Iraque, fechar Guantánamo e estabelecer diálogo mesmo com países de reputação duvidosa. Sua eleição fez a festa dos que torcem para o bem. E despertou o ceticismo de quem já conheceu políticos com esse discurso.

Os EUA são, de várias maneiras, responsáveis pelo estado como se encontra a situação no Oriente Médio. Por diversas vezes esse grande país sem nome da América do Norte atuou para desestabilizar governos, apoiando rebeldes ou mantendo ditaduras. É incontável o número de grupos terroristas que já tiveram apoio dos EUA. A começar pelos sionistas, que explodiam bombas na palestina nos idos de 1947 em busca da formação de seu Estado, contrariando vontade da Grã-Bretanha.

Em 1979, com a revolução do Irã, até então parceiro americano, o Iraque passou a ser armado pelos EUA, o que incentivou o conflito Irã-Iraque. Detentor de um poderoso exército, em 1990 o Kuwait foi invadido por Saddam Hussein. Atacado por Bush pai, o exército iraquiano foi vencido, mas Saddam não foi derrubado. Os curdos do norte do Iraque iniciaram um movimento separatista que foi duramente reprimido por Saddam. Clinton bombardeou bases iraquianas para impedir os ataques aéreos aos curdos.

Bush filho pretendia terminar o trabalho do pai. O ambiente de guerra ao terror criado após a derrubada das torres gêmeas tornou possível novo ataque ao Iraque. Sob a alegação de posse de armas de destruição em massa – cujas provas foram forjadas pela CIA -, a segunda guerra do Iraque teve início e resultou na destruição total do país. Com isso, a frágil harmonia exibida entre sunitas e xiitas foi rompida. A guerra civil não foi escancarada enquanto os EUA estavam lá.

Mas Obama fez muitas promessas. Disse que iria fechar Guantánamo. Após sete anos, os prisioneiros seguem na prisão, sem direitos de prisioneiros de guerra e sem as garantias da constituição americana. Ninguém quer os prisioneiros. Mas levá-los para serem julgados pelas leis americanas pode fazer mal à popularidade interna de Obama. A Fox News gritaria: Obama traz terroristas para dentro dos EUA. Mas Obama prometeu. E o certo a se fazer é dar direitos aos prisioneiros. A popularidade do governo Obama parece estar acima de sua disposição, reiterada e propalada, de fazer o bem.

No Iraque, Obama prometeu tirar as tropas de lá. Chega de mortos (leia-se, chega de mortos americanos). As tropas foram para o Afeganistão, mas disso os defensores do bem não fingem não enxergar. A segunda guerra do Iraque já estava com popularidade semelhante à guerra do Vietnã. E então, depois de eleições forjadas e às pressas, os americanos saíram do Iraque.

No dia seguinte à retirada dos americanos, a maioria xiita e o primeiro-ministro iraquiano passaram a perseguir os sunitas, inclusive alguns com assento no Governo. Rebeldes sunitas começaram a aterrorizar cidades no norte do país. Os EUA não iriam mais se envolver com envio de tropas, mas deixaram o Governo do Iraque com os melhores tanques dos EUAs. E seguiu fornecendo armas para o fraco governo iraquiano.

Seguindo orientação de uma passagem do Alcorão, os rebeldes sunitas decretaram o nascimento de um Estado Islâmico. Com a conquista de algumas cidades, tanques e helicópteros americanos caíram nas mãos do ISIS.

A Síria é velho aliado da Rússia. Não é de hoje a relação difícil entre Síria e os EUA. Na chamada “primavera árabe”, a revolta popular chegou ao Governo de Bashar al-Assad. O Governo Obama viu a possibilidade de conquistar mais um aliado na região. E passou a armar os grupos rebeldes de origem sunita. Terroristas, membros da Al-Qaeda, qualquer um que se identificasse como oposição ao Governo da Síria, que de fato oprimia a população, poderia receber armas do Governo Obama.

Dois países vizinhos foram desestabilizados, Síria e Iraque. Ambos tiveram forte influência americana. Com a desestabilização da Síria, o grupo que se intitulou Estado Islâmico passou a avançar rumo ao território Sírio. Enquanto o Estado Islâmico ganhava força, cortava cabeças, estuprava e escravizava mulheres, Obama insistia em apoiar os rebeldes da Síria.

O “bem” é uma força tão mobilizadora que até Dilma interveio e defendeu que o Brasil deveria “estabelecer diálogo” com o Estado Islâmico. Pois entendam: as pessoas de bem conversam; as más gostam de guerra.

Evidente que a culpa dos atentados terroristas da França não é de Obama, nem da Dilma, que queria conversar com o Estado Islâmico. Mas é certo que o Estado Islâmico não existiria se Obama não estivesse tão empenhado em “fazer o bem”. Ou talvez seu principal interesse seja “dar a impressão” de que está fazendo o bem.

Enquanto isso os presos seguem em Guantánamo – porque é popular defender o fim de Guantánamo, mas não é popular soltar os prisioneiros nos EUA -; enquanto isso o Estado Islâmico ganha força, e Obama continua defendendo a existência de um governo “democrático” no Iraque (afinal ele saiu de lá, pois a guerra era impopular); enquanto isso Bashar al-Assad, que poderia combater o Estado Islâmico, continua sendo atacado por rebeldes apoiados pelos EUA. Moral da história? Tomem cuidado com os que só fazem o bem.

Gustavo Theodoro

Da Revolução

foto O Pensador

Nunca fui extremista. Quando jovem, era moderado em meus alinhamentos políticos. Apesar de ter lido Marx e Engels na adolescência, nunca me vi como um revolucionário. Tive muitos amigos que queriam mudar a realidade com um só golpe, com uma revolução, com a tomada de poder. Talvez George Orwell e sua Revolução dos Bichos tenha me imunizado quanto à fé nas revoluções.

Lembro-me de uma conversa que tive há mais de vinte anos com um amigo historiador e marxista. Conversávamos sobre Hannah Arendt, que eu havia descoberto poucos anos antes. Ele me disse: “é uma pensadora muito interessante; mas não defende a revolução”. Achei interessante o adversativo inserido na frase. Para maioria dos marxistas do século passado – exceto os que seguiam a linha de Gramsci -, só a revolução seria capaz de construir uma nova sociedade.

Acredito que Hannah Arendt tornou-se reformista após a leitura de Tocqueville, grande estudioso das revoluções francesa e americana. Tocqueville é pensador de difícil enquadramento. Sobre ele já se disse que era demasiado liberal para o partido de onde ele provinha, não muito entusiasta por ideias novas aos olhos dos republicanos, ele não foi adotado nem pela direita nem pela esquerda; ele permaneceu suspeito a todos.

De fato. Edmund Burke, contemporâneo da Revolução Francesa, nos dá a imagem clássica do conservador. Kant não nos remete imediatamente à imagem de um liberal, mas acompanhava o desenrolar da revolução com muito interesse, torcendo pela “maioria silenciosa” que apoiava a revolução.

A leitura da obra de Tocqueville explica as razões da dificuldade de sua classificação. Crítico da democracia representativa (que produzia bons pais de família, mas poucos estadistas), parecia ser saudoso do regime aristocrático. Ao mesmo tempo, era forte defensor das liberdades fundamentais humanas, dentre as quais a liberdade de expressão. Era um analista que se dispunha a fazer o trabalho do historiador, buscar documentos originais e se inteirar verdadeiramente sobre um assunto antes de tomar uma posição.

Apesar de não ter sido contemporâneo da revolução francesa de 1789, foi um de seus maiores estudiosos. Ainda que conhecido por seu liberalismo, Tocqueville fez um julgamento histórico bastante crítico daquele fenômeno revolucionário (que ele expandiu para as demais revoluções).

O objetivo dos revolucionários franceses era construir algo totalmente novo. Para isso, era necessário exterminar – inclusive fisicamente – qualquer resquício do velho regime. A decapitação tornou-se marca da revolução. Os revolucionários assassinaram quase todos os que se relacionavam com o antigo regime, destruíram suas instituições, seus tribunais e o poder local. Terras da Igreja e do Estado foram confiscadas. Depois da terra arrasada, novo regime foi construído.

Para Tocqueville a revolução fez muito pouco dentro da própria França. Se é fato que o mundo absorveu os ideais da revolução francesa, que passou a ser um marco em nossa história, na própria França seus efeitos não teriam sido tão notáveis.

Ao recuperar documentos históricos, Tocqueville percebeu que todas as raízes da França pós-revolucionária tinham sido plantadas no velho regime. A liberdade de expressão, por exemplo, era maior no antigo regime do que sob Napoleão. Tocqueville concluiu, ainda, que o feudalismo praticamente não mais existia nos anos que antecederam a revolução. O poder central já dava as cartas, escolhendo administradores regionais e resolvendo as contendas judiciais. E os efeitos da reforma agrária teriam sido, na prática, muito inferiores do que o que se alardeou sobre o assunto.

Lembra ainda Tocqueville que, aos poucos, o antigo regime foi sendo reconstruído sob Napoleão e os Governos que lhe sucederam. Novo Imperador foi escolhido poucos anos depois da revolução. O poder do clero foi restituído. E boa parte das instituições presentes no antigo regime foram mantidas ou retomadas algum tempo depois. Para cada assunto – tribunais administrativos, poder central, clero, reforma agrária – Tocqueville faz questão de buscar os documentos do antigo regime para demonstrar que pouco avanço se percebeu depois de meio século da revolução.

Se Tocqueville estiver correto em seu julgamento histórico, podemos dar um passo adiante e arriscar que, talvez, a utilização adequada de nossa liberdade de expressão tenha potencialmente maior poder de destruição e construção do que o uso da guilhotina. Por mais que a substituição de governos seja considerada símbolo de mudança, são homens e ideias que acabam por construir algo novo, independentemente de ter havido ou não uma revolução.

A revolução americana se deu com muito pouco sangue derramado, mas ela foi liderada por grandes estadistas que se apoiaram em ideias existentes no momento, quase no mesmo período da revolução francesa. Sem as ideias de liberdade e igualdade que corriam o mundo no momento, uma nação como os EUA não teria sido fundada naquelas bases.

Sim, sem os homens que se dispõe a agir nada se constrói. Mas é de se notar que qualquer tirania que se prese inicia-se não com a prisão dos homens de ação, mas com o cerceamento à liberdade de expressão. Os humoristas, em geral, são os primeiros a serem censurados, pois o riso destrói a autoridade. Depois são os críticos e os analistas. Por último, até as notícias são mutiladas. Ideias movem o mundo e podem fazer mais do que revoluções. Por pensar dessa forma, considero-me um reformista que, por não estar disposto a abandonar minhas convicções, por vezes acabo sendo tratado por radical. E o risco de dar opinião é evidente. Deve ser por isso que Schopenhauer disse que “o verdadeiro filósofo vive perigosa, mas livremente”. Pois é o filósofo, que só pensa, que acaba sendo o artífice da construção de um novo mundo.

Gustavo Theodoro