Mês: julho 2014

Breve Recesso

A Ágora fará um recesso por cerca de 15 (quinze) dias para descanso. Voltaremos tratando do choque de gestão de Aécio Neves na área de Educação, com a discussão sobre a situação econômica do Brasil e com análises da campanha eleitoral para Presidente da República. Temos mantido a publicação de três a cinco textos semanais desde janeiro deste ano, razão pela qual será deferido esse período de descanso não remunerado. Até lá.

Financiamento Público Exclusivo

Os gastos de campanha têm aumentado a cada eleição. Na mesma proporção aumentam as doações para as campanhas políticas. É difícil imaginar que esse aumento tenha relação com o maior interesse dos cidadãos pela política. Como mais de 90% das doações para as campanhas têm origem nas empresas, não seria implausível supor que essas doações visam a eventuais ganhos futuros. Logo, pode-se concluir que parte da corrupção que testemunhamos está relacionada às campanhas eleitorais.

Tendo em vista esse diagnóstico, diversos partidos ligados historicamente à esquerda – inclusive o PT – têm proposto a adoção do financiamento público exclusivo das campanhas como forma de desestimular a corrupção ligada às campanhas. Na visão dos defensores dessa tese, os políticos poderiam fazer suas campanhas sem que estivessem constrangidos pela necessidade de obter recursos para o financiamento delas, o que teria o efeito de reduzir a influência do poder econômico sobre o parlamento.

No executivo, impedir a doação de empresas evitaria acertos prévios com os candidatos sobre futuros contratos ofertados pelo administrador eleito. No legislativo, a vedação às doações eleitorais poderia livrar os candidatos da futura defesa de teses patrocinadas pelos financiadores de campanha.

Há, no entanto, desvantagens na adoção do financiamento público de campanha que nem sempre são lembrados. Primeiro, há o evidente custo das campanhas para o Estado. Hoje já é o dinheiro público que financia o tempo de televisão. O fundo partidário, também decorrente de repasses de dinheiro público, pode ser utilizado na campanha eleitoral. Ou seja, já há dinheiro público financiando boa parte das campanhas eleitorais. O que se quer é que mais dinheiro público seja utilizado para financiar estúdios, comícios, cabos eleitorais, gráfica, etc.. Os recursos públicos, é bom que nos lembremos constantemente, são escassos e finitos. Mais dinheiro público significa mais impostos. É necessário verificar se a sociedade está disposta a fazer mais esse sacrifício.

Outra desvantagem ligada ao financiamento público exclusivo se relaciona ao vínculo do político com o eleitor. Diversos países mais desenvolvidos que o nosso exigem que os políticos busquem recursos para suas campanhas junto aos eleitores. É o caso dos EUA, por exemplo, onde políticos passam dias telefonando pessoalmente para os eleitores em busca de apoio, inclusive financeiro, para suas campanhas. Para isso, é necessário que o político tenha ideias claras, represente uma parcela do pensamento da sociedade, para que o cidadão se motive não apenas a votar no político, mas também doar recursos para a campanha. Esse vínculo direto entre os cidadãos e o político é, em minha opinião, saudável para a democracia, reforça a relação entre o eleitor e eleito.

Há um terceiro aspecto que pode passar despercebido, pois é mais sutil. Caso o político não tenha a sua disposição tempo de televisão e verbas para campanha, será necessário que ele convença os eleitores que ele e suas ideias merecem a doação eleitoral para que aparições nas TVs possam ser compradas. Assim, os políticos e suas ideias terão maior exposição se for possível convencer maior número de pessoas a fazer doações. Políticos ou ideias com pouca representação na sociedade terão, também, poucos recursos, provavelmente nem sendo possível aparecer na TV. Com isso, torna-se praticamente inviável o modo inadequado com que alguns políticos fazem uso do tempo de televisão. Com vistas a se tornarem mais conhecidos no futuro, alguns políticos se candidatam nas eleições majoritárias apenas para se tornarem mais conhecidos para futura eleição ao parlamento. Candidatos sem nenhuma viabilidade eleitoral já se aproveitam do tempo de TV e do fundo partidário para se lançarem candidatos sem qualquer perspectiva eleitoral com o único objetivo de serem eleitos em futuros pleitos. Com o financiamento público exclusivo, esse quadro pode se agravar.

Há por parte dos defensores do financiamento público exclusivo de campanha a crença de que, com a proibição de todas as doações, o caixa 2 eleitoral seria exterminado. Sabe de nada, inocente. Caixa 2 se caracteriza justamente por ser operacionalizado fora das luzes republicanas, na noite dos acontecimentos, sem olhares alheios. Caixa 2 é doação não contabilizada, provavelmente decorrente de dinheiro sujo ou mal lavado. A proibição do Caixa 1 não afetará o Caixa 2, pois o Caixa 2 se relaciona ao crime, ao submundo, à corrupção, à negociata. Mais dinheiro pode garantir uma eleição mais tranquila. É evidente que o mau político não deixará de usar esse expediente.

Não aprecio doações de empresas. Prefiro as doações de pessoas físicas. Acho que o STF tem ido por um bom caminho ao banir as doações de empresas. No entanto, ainda penso que precisamos de menos dinheiro público nas campanhas, e não de mais. Precisamos de menos horários eleitorais gratuitos, que são absolutamente inúteis nas eleições proporcionais.

Analisando-se os prós e contras, sou favorável ao financiamento privado exclusivo das campanhas, com doações restritas a eleitores pessoas físicas. Não veremos políticos propondo isso, visto que irá contra seus interesses. Mas não podemos permitir que essa discussão se dê apenas nos parlamentos. Novos tempos demandam maior participação da sociedade civil. E a sociedade civil somos todos nós.

Gustavo Theodoro

Eu Julgo Todo Mundo

Por razões que desconheço, as pessoas dizem orgulhosamente que não julgam ninguém. Para tanto, são invocados preceitos bíblicos, como o texto contido no Evangelho Segundo Mateus: Não julgueis, pois, para não serdes julgados; porque com o juízo que julgardes os outros, sereis julgados; e com a medida com que medirdes, vos medirão também a vós. Talvez seja o temor de ser julgado que motive essa abstenção declarada em utilizar nossa capacidade de julgar.

Bom, eu julgo todas as situações e todo mundo. O tempo todo. Pode parecer assustador declarar isso assim, mas saiba, caro amigo, que você também pratica a mesma atividade. Já escrevi aqui que pensar e julgar se relacionam, mas estão longe de se assemelhar.

Kant, em sua bela Crítica ao Juízo, chamou sua obra de Crítica ao Gosto, visto que, na sua visão, o paladar era o sentido que despertava a atividade de julgamento desvinculada do pensamento. Ou seja, pelo gosto, podemos perceber que o julgar tem alguns aspectos que se distanciam bastante do pensar, sendo inclusive desnecessária essa habilidade, pois mesmo seres irracionais são capazes de escolher o que comer pelo paladar.

Julgar é atividade praticada por todo ser moral. Julgar os outros é, também, julgar a si próprio. É pelo exame de ações de outras pessoas que usualmente estabelecemos parâmetros para como se deve viver a vida e, mais precisamente, como nós devemos viver a vida.

Julgar significa diferenciar o bom do ruim, o bem do mal, o belo do feio. É certo que Horácio dizia que pulchum este paucorum hominum (o belo é para poucos). Pois eu complemento que é para aqueles que praticam a arte de julgar. Pois é a prática que nos torna melhores em estabelecer esses parâmetros, em definir nosso modo de vida.

Pensar não é atividade política, não precisamos do outro para pensar, ao contrário do que ocorre com a atividade de julgar, que exige um interlocutor, exige a presença de um outro, ainda que não presente naquele exato momento.

À medida que evoluímos na discussão do julgar, percebemos que algumas atividades exigem maior sensibilidade, outras maior capacidade de processar o pensamento. Como Kant descobriu, o julgar envolve, também, a imaginação; a capacidade de, pelo pensamento, imaginar possibilidades e buscar caminhos, pelo intelecto, para a mais justa avaliação. Pensar ampliado foi a expressão utilizada por Kant para descrever essa atividade de vasculhar, dentro de si próprio, as possibilidades que uma situação possa envolver, para poder melhor julgar.

John Rawls escreveu recentemente que, para o bom exercício da atividade de julgar, seria necessário observar cada situação sob o véu da ignorância. Aqui o que está em jogo é a atribuição de regras para sociedade. O conselho é ao legislador ou àquele que vá participar da vida social, buscando estabelecer regras para o cumprimento de todos. É nesse cenário que Rawls nos ensina a nos colocarmos como se não soubéssemos que situação nos encontramos na sociedade. Imagine-se negro, branco ou asiático diante da política de cotas. Imagine-se pobre, remediado ou rico na discussão do sistema público de saúde. Imagine-se com baixa inteligência ou um gênio em um mundo meritocrático. É esse exercício, que envolve a imaginação de Kant, que ele propõe. É uma situação que pode muito bem ser explicada pela frase: se você não soubesse de antemão seu lugar no mundo, como as leis deveriam ser escritas?

Resta evidente dessa discussão se julgamos tudo e todos o tempo todo, deveríamos fazê-lo, pois aprendemos muito com a prática do julgamento. Negar esse hábito e procurar evitar pensar sobre nossos julgamentos pode até ter o efeito de nos tornar mais preconceituosos, pois tenderemos ainda mais a repetir julgamentos automáticos, que estão muito próximos dos preconceitos. O desenvolvimento da atividade de julgar, a valorização dela em nossa vida, nos torna seres moralmente mais evoluídos.

Nietzsche era crítico do modo como a sociedade de sua época incorporara a cultura cristã, tolhendo o homem de suas potencialidades. Disse Nietzsche sobre o assunto que o que outrora seria o tempero da vida, agora seria o veneno. Essa sentença de Nietzsche se aplica muito bem à atividade de julgar, tão mal compreendida no mundo contemporâneo.

Gustavo Theodoro

Tudo Como Antes

Antes da Copa da Fifa, a imprensa internacional temia pelo fracasso da Copa no Brasil. A temperatura, a falta de mobilidade, os gramados, as manifestações, tudo assumiu grandes dimensões por lá, especialmente na imprensa inglesa.

Por aqui, conhecemos demais o Brasil para supor que a Copa seria um fracasso. Sabíamos que as obras de mobilidade não ficariam prontas – como não ficaram -, mas desde a ECO-92 aprendemos a lidar com isso: faixas seletivas, feriados, ponto facultativo para os servidores públicos, cancelamento de outros eventos; somos muito criativos em compensar os gargalos na infraestrutura. Tínhamos ainda o exemplo da Copa da Fifa na África do Sul, que apresentou problemas muito semelhantes aos nossos, mas que teve Copa.

Com relação aos estádios, sabíamos que iriam ficar prontos. Nossas empreiteiras parecem até preferir obras às pressas, em que as jornadas noturnas engordam os aditivos dos contratos. Segundo a Folha de São Paulo, as obras para a Copa custaram ao país cerca de R$ 35 bilhões. Só o estádio de Brasília custou cerca de R$ 2 bilhões em razão dos atrasos e dos aditivos. É por isso que nunca duvidei da Copa, nem embarquei em movimentos do tipo Não Vai Ter Copa, apesar de reconhecer sua legitimidade.

Ao mesmo tempo, agora tenho percebido por parte dos alinhados ao Governo Federal um ar ufanista, vitorioso, como se o sucesso da organização da Copa da Fifa e como se os bons jogos que testemunhamos atestassem nossa capacidade – ou a capacidade do Governo – de realizar grandes eventos.

Lamento informar a esses neonacionalistas que continuamos na mesma página que sempre estivemos. De volta à normalidade, voltaram os engarrafamentos. Em anos de Copa, os turistas de negócios e eventuais deixam de vir para o país sede em razão do custo das viagens e do temor de eventuais tumultos. É provável que agora os conhecidos gargalos em nossa infraestrutura voltem a se apresentar.

Governo e oposição contavam com a Copa para utilizá-la politicamente. Acho, no entanto, que seu resultado – sucesso do evento esportivo, derrota humilhante do Brasil, suspensão das manifestações e obras de infraestrutura inconclusas – não afetará as próximas eleições. Em outubro, a Copa será assunto velho, superado pela discussão dos problemas do País – assim espero – ou pela troca de acusações envolvendo algum tema irrelevante – hipótese bem mais provável.

Eu pretendo tratar das eleições neste espaço, esforçando-me bastante para evitar a superficialidade das análises.

Gustavo Theodoro

7 X 1

Muito já foi dito sobre a humilhante derrota sofrida pelo Brasil para a Alemanha. Característica nossa é procurar os culpados, julgá-los, condená-los, e continuarmos vivendo nossa vida de onde paramos.

Parece que dessa vez ao Felipão e ao Fred estão sendo dirigidas as mais duras condenações. Interessante como nossa população se comporta de forma previsível. Em todas as Copas do Mundo (ops, Copa da Fifa), o técnico da seleção brasileira é pessoa respeitada e admirada pela maioria (como demonstram as pesquisas de opinião) até que seja eliminado da Copa.

De herói a vilão, a mudança de julgamento é praticamente instantânea. Na Copa de 2006, Parreira, Roberto Carlos – e seu meião – e a geração de craques sem comprometimento foi condenada. Em 2010, Dunga, Felipe Mello e Júlio César foram os alvos da vez. Agora nova leva de culpados já começa a ser selecionada, o que deve nos manter sossegados por mais quatro anos.

O futebol se tornou mais competitivo. A ciência é mais utilizada a cada dia. A preparação física, os tratamentos médicos, o estudo tático, o planejamento das bases, tudo evoluiu. Evidente que nada disso ganha jogo. O investimento da Inglaterra em sua seleção foi imenso. As mais modernas tecnologias de análise de adversários, de resfriamento de corpos, de curvas de calor foram utilizadas e, ainda assim, lá se foi a Inglaterra na primeira fase. Ainda que a seleção inglesa não seja uma força das maiores do futebol, tem um dos melhores campeonatos do mundo – senão o melhor, mas não consegue formar suficientes jogadores de qualidade.

O Brasil, com população quatro vezes superior a da Inglaterra, deve produzir maior número de bons jogadores, tendo em conta apenas a base populacional. Como o futebol é praticamente o único esporte praticado por aqui, é natural que nosso País seja um celeiro de bons jogadores.

Houve um tempo em que a prática era mais importante do que a teoria ou a ciência no futebol. Dispor dos melhores jogadores poderia levar uma seleção nacional ao título. Quando a melhor técnica era combinada a uma evolução do preparo físico, como foi o caso da seleção de 1970, o título conquistado era incontestável. Sim, por muito tempo chegamos a exportar técnicos de futebol.

No entanto, ciência e planejamento bem executados parecem estar fazendo diferença nesta copa. Quando a Alemanha foi derrotada pelo Brasil na final da Copa de 2002, um grande debate nacional foi proposto, visto que o time tinha apenas um craque. Além disso, havia sido diagnosticada dificuldade de se produzir jogadores criativos. A federação alemã de futebol assumiu parte do processo de formação de jogadores, com vistas à formação desse tipo de talento. Com exceção do Klose, todos os jogadores que golearam o Brasil nesta semana são frutos desse trabalho.

No Brasil, a área de formação de jogadores tem regredido. Empresários e cartolas se articulam para fazer dinheiro rápido com qualquer promessa de craque que apareça. É bastante incomum que uma jovem promessa de craque esteja vinculada apenas a um clube de futebol. Normalmente, há uma empresa ou um conjunto de empresários que detém a maior parcela do passe dos jogadores. O objetivo dessas pessoas – todas ligadas a nossos cartolas, a nossas federações de futebol e à CBF – é enriquecer, solapando a possível renda dos clubes em proveito próprio. Não à toa, Presidentes da CBF são alvos de CPI e, por vezes, são até obrigados a deixar o país.

No passado os clubes tinham interesse em formar jogadores, pois poderiam reforçar seus times ou mesmo seus caixas. Hoje poucos clubes investem em formação de jogadores, já que o lucro quase sempre é direcionado a empresários.

E aqui entra nosso baixo desenvolvimento. Países desenvolvidos dão especial atenção aos orçamentos públicos. Nenhuma obra de grande porte é aprovada sem discussão com a sociedade. Grandes eventos são vinculados à aprovação do parlamento, no mínimo, isso quando não são objeto de plebiscito.

No Brasil, tendemos a tratar o dinheiro público como ilimitado. Além disso, dinheiro público parece não pertencer a ninguém. Isso é condição cultural, reflete nível civilizatório. E o comportamento de desinteresse pelo orçamento comum é também verificado nos condomínios e clubes, como os de futebol.

É interessante observar que, em 1970, a seleção da Alemanha Ocidental teve problemas na discussão da premiação de jogadores. Em 1990, foi a vez de os jogadores brasileiros se revoltarem com a premiação, o que culminou na famosa foto com as mãos sobre o brasão do patrocinador e a eliminação precoce da seleção daquela Copa. Na Copa de 2014, foram as seleções africanas que brigaram por dinheiro, exigindo, em alguns casos, pagamento adiantado e em dinheiro. É impossível não relacionar esses comportamentos a níveis de desenvolvimento, da capacidade de cada grupo de dialogar e firmar acordos.

Ocorre que, no passado, o planejamento, a ciência, a tática, tinham maior relação com a prática contínua do esporte. Ou seja, países com maior número de praticantes do esporte tendiam a apresentar melhores resultados nos torneios internacionais. Países como o Brasil, capazes de apresentar ao mundo maior quantidade de craques, acabava por serem detentores de maior número de títulos.

Desde o fim da era de Telê Santana, o futebol brasileiro parou de evoluir. A seleção de 1990 foi desastrosa. A seleção de 1994 foi a pior seleção brasileira a ganhar um título. A ajuntamento desordenado de jogadores de 1998 conseguiu um inacreditável vice-campeonato. A seleção de 2002, apoiada em três jogadores excepcionais, conseguiu vencer a Copa, mas sem apresentar ao mundo um novo caminho para o futebol. Em 2006, uma de nossas melhores safras de craques foi desperdiçada por uma comissão técnica incapaz provocar o comprometimento dos jogadores, o que nos levou à eliminação precoce. Em 2010, a seleção tinha um técnico disciplinador, porém novato. A geração não ajudou muito, visto que Kaká já havia entrado em decadência física e Robinho se mostrara apenas um bom jogador.

Em 2014, tentamos reviver a campanha de 2002, pela contratação do mesmo Felipão que nos levou a nosso último triunfo. O desastre foi absoluto. O time, formado na enganadora Copa das Confederações, não convencia. Todos os jogos foram difíceis. Nem sinal da posse de bola que tivemos em 1982 e 1994. Não foi observada nenhuma influência do futebol reinventado por Guardiola no Barcelona. Nem mesmo sombra do retranqueiro Mourinho foi notada em nossa seleção. Provincianos, acabamos ficando para trás.

Com quatro minutos de jogo entre o Brasil e a Alemanha, foi possível perceber que os principais jogadores do meio de campo alemão não eram marcados. O time brasileiro entrou mais uma vez pressionado, comportando-se como se suas vidas dependessem daquela partida. Time que se percebe sem condições de competir se desequilibra emocionalmente, ainda mais quando a pressão é grande. Com sete minutos de jogo, os volantes alemães construíram a primeira jogada perigosa de ataque. A seleção brasileira continuava comportando-se de forma afoita, indo ao ataque de forma desordenada.

A falta de treinamento revelou sua face no escanteio cobrado pela Alemanha aos 11 minutos. O jogador mais perigoso da Alemanha nesta Copa apareceu sozinho na pequena área para marcar o primeiro gol da partida com os pés. Um atacante jamais pode conseguir concluir, livre, com os pés, dentro da pequena área, em uma cobrança de escanteio.

O mapa de calor da partida indicou que David Luiz não guardou sua posição. O mesmo mapa indicou que Fred quase não se movimentou durante a maioria das partidas. Mas o problema não é só técnico, nem só tático. A goleada revelou que temos problemas muito mais sérios do que supúnhamos. Nossa recém descoberta incompetência em formar técnicos foi agravada por não formamos mais craques na quantidade que já formamos. E isso tem relação com nossos clubes, com a CBF e com o ambiente cultural em que vivemos.

Não estamos condenados ao atraso. O Brasil é um país incrível. Em algumas áreas, conseguimos competir com o primeiro mundo. Não podemos é pensar que sem estudo, sem técnica, sem resolver os problemas dos clubes e da CBF, vamos conseguir dar a vota por cima. Não podemos é nos enganar e pensar que só trocando o técnico e substituindo alguns jogadores vamos voltar a ser os melhores. A derrota por esse placar revelou o tamanho da crise de nosso futebol. Esperemos que a mensagem seja devidamente compreendida. O 7×1 é eloquente. É humilhante. E não pode ser resolvido apenas com a escalação de mais um jogador de meio de campo ou com a substituição do treinador. É preciso ir além disso.

Gustavo Theodoro

O Custo dos Estádios

Alemanha, 2006. Seleção brasileira eliminada. Aqueles que viajaram para assistir aos jogos ouviam que a Copa tinha acabado para eles, o que os fazia retrucar: acabou nada; agora são 24 meses para pagar. Com a Copa sendo realizada no Brasil, esse é um dos sentimentos que agora afloram: o sentimento de que pagamos para que outras seleções pudessem exibir seu talento. Agora todos se vão e ficamos aqui com as contas para pagar.

É certo que nem todos os estádios foram construídos com dinheiro público. Apesar de alguns estádios terem recebido recursos dos tesouros estaduais, a maioria dos investimentos seriam feitos pela iniciativa privada. Ocorre que os recursos contabilizados como privados foram financiados, de forma subsidiada, pelo BNDES. Mas não é garantido que os governos recuperem os recursos investidos.

Como se sabe, os recursos emprestados para a construção dos estádios deverão ser pagos nos próximos 20 anos pelos consórcios vencedores das licitações abertas pelos governos. No entanto, não será fácil recuperar os recursos investidos, mesmo em praças com times de futebol de grandes torcidas, como Rio e São Paulo. Muito menos provável é que os estádios construídos em Manaus, Cuiabá e Brasília consigam auferir renda suficiente para fazer frente aos financiamentos.

Além disso, a forma como o BNDES é mencionado (não é dinheiro dado: é empréstimo, e será pago – dizem os defensores do atual Governo) faz parecer que se trata mesmo de um simples financiamento, sem qualquer custo para o Governo. Quem conhece minimamente a engenharia financeira dos empréstimos do BNDES sabe que, ainda que os financiamentos sejam pagos, há um custo para mantê-los.

Os recursos do BNDES são repassados pelo Tesouro, que os capta no mercado financeiro por meio de pagamento de juros que têm por base a taxa Selic. Os financiamentos para os estádios da Copa tiveram taxas entre 4 e 6%. Ou seja, o valor financiado produz pagamento de juros entre 5 e 7% ao ano sobre o saldo devedor, por ano. Essa conta é do Governo Federal.

Mas não é só isso. O BNDES não opera no mercado. Seus empréstimos são operacionalizados por meios dos bancos de varejo ou de investimento. Ocorre que os bancos não aceitam, dado o ambiente regulatório brasileiro, condições inferiores a 4% ao ano. Assim, quando do pagamento dos empréstimos, o BNDES só recebe o principal, quando muito acrescido de juros de 2%, pois o restante permanece com os bancos que operacionalizam os empréstimos.

Logo, no que tange aos estádios, vamos nos lembrar desta Copa por muitos anos, fazendo, de certa forma, até sentido a denominação da Copa das Copas. Pelo menos para o Brasil ela será mesmo. E isso não se deve apenas aos 7×1 que sofremos da Alemanha. Vamos pagar juros ao mercado sobre o capital investido e podemos ainda arcar com o valor principal dos estádios que não conseguirem se manter. Portanto, a Copa que acabará no domingo é a das seleções de futebol. Para o Brasil, restam ainda 20 anos para pagar.

Gustavo Theodoro

Joaquim Barbosa

Em primeiro de julho de 2014, o Ministro Joaquim Barbosa presidiu sua última sessão do Supremo Tribunal Federal. Depois de pouco mais de uma década, ele fez parte da transformação por que o STF passou nos últimos anos. As sessões com transmissões ao vivo e a visibilidade dos temas julgados modificaram a imagem da Egrégia Corte, aproximando-o da população. Para o bem ou para o mal, Joaquim Barbosa fez parte desse processo.

Portador de um currículo de boa envergadura, com títulos obtidos no exterior, Joaquim Barbosa foi inicialmente reverenciado por ser negro, em nossa estranha forma de manifestar racismo. Posteriormente, seu temperamento e sua coragem começaram a protagonizar o julgamento de sua figura pública.

Como é próprio desta Ágora, gosto de destacar a forma como os torcedores de partidos políticos se manifestam de acordo com a ocasião, com o mesmo personagem envolvido.

A primeira grande polêmica pela qual Joaquim Barbosa será lembrado se deu no tempo em que Gilmar Mendes era o Presidente do Supremo. Gilmar Mendes sempre foi identificado com o Governo FHC, que o indicou após seu trabalho na AGU. Gilmar Mendes deu diversas declarações à imprensa que desagradaram ao PT e a setores do Governo. No entanto, foi o episódio Daniel Dantas que inflamou o ânimo do plenário naquela época.

Daniel Dantas havia sido preso na Operação Satiagraha e solto por Gilmar Mendes. Após nova prisão de Daniel Dantas por suposta tentativa de compra testemunhas, Gilmar Mendes novamente determinou sua soltura, em decisão considerada polêmica, visto que não era clara a competência do STF para proferi-la. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa discutiram violentamente, com mútuas acusações; Daniel Dantas era o pano de fundo daquele desentendimento.

A imprensa simpática ao Governo do PT imediatamente tomou o partido de Joaquim Barbosa, tido como herói por verbalizar aquilo que poucos teriam coragem. A Revista Veja e seus blogs atacaram Joaquim Barbosa, acusando-o de destemperado, sendo considerado despreparado para ocupar a função de ministro naquela corte. Naquele momento, Luis Nassif destacou que o currículo de Joaquim Barbosa era bastante superior ao de Gilmar Mendes, seguindo a linha comum daqueles tempos.

Quando a denúncia relativa à AP 470 foi aceita – Mensalão, os advogados de defesa de todos os réus apresentaram argumentos para que o julgamento não fosse desmembrado. É importante lembrar que, até aquele momento, nunca o STF havia condenado uma autoridade com prerrogativa de foro. Era consenso entre os advogados que o julgamento no Supremo era garantia de impunidade. Por isso a defesa dos advogados dos réus pelo julgamento naquela corte.

Algum tempo depois ficou claro que Joaquim Barbosa iria fazer o processo chegar até o fim. Delúbio Soares havia previsto que toda aquela história iria se transformar em uma piada de salão. O ritmo das oitivas determinado por Joaquim Barbosa parecia indicar que os réus, afinal, teriam seus crimes apreciados pelo STF. Neste momento, a torcida passou a se inverter.

Para a imprensa amiga do Governo Federal, Joaquim Barbosa passou a ser criticado por não dar direito de defesa aos acusados, por atropelar etapas e, em certo momento, chegaram a acusá-lo até pela apreciação conjunta dos autos, quando foram os próprios réus que combateram o desmembramento (é importante lembrar que Joaquim Barbosa votou pelo desmembramento, mas foi vencido pela maioria de então).

Luis Nassif atacou Joaquim Barbosa, acusando-o de ter entrado pelas cotas, em inacreditável manifestação de racismo. Ao mesmo tempo, as decisões de maior rigor processual de Joaquim Barbosa começaram a ser elogiadas pelos que antes o criticavam (como o blogueiro Reinaldo Azevedo, da Revista Veja).

O julgamento do Mensalão transcorreu com certa tranquilidade, apesar da evidente pressão sofrida pelos Ministros. Réus cuja culpa não se comprovou foram inocentados. Réus que se envolveram na engenharia de lavagem de dinheiro – como os sócios da SMP&B, os diretores do Banco Rural e os líderes partidários -, quase todos foram condenados.

A polêmica centrou-se na culpa de José Dirceu, que para muitos foi condenado por responsabilidade objetiva. Não é minha opinião. Havia provas, ainda que não se utilizasse a teoria do domínio do fato (que não se assemelha à teoria da responsabilidade objetiva). A família de José Dirceu foi beneficiada financeiramente por membros da organização. Além disso, houve reunião não explicada no Palácio do Planalto com os operadores do esquema, como Marcos Valério, Kátia Rabelo (dona do Banco Rural) e Delúbio Soares. Para penalistas, reunir-se com esses personagens em conjunto, na época em que os crimes eram cometidos, tem o mesmo efeito que constatar que um suspeito de homicídio esteve no local do crime no momento do assassinato.

Em todo o processo, Joaquim Barbosa portou-se com muita coragem. Seus defeitos também emergiram. Não é um homem para atuar em colegiado, pois demonstrou muito pouco respeito pela opinião alheia. Além disso, seus julgamentos, em alguns momentos, revelaram que sua percepção de culpa dos réus o levou a aumentar algumas penas (como no caso da formação de quadrilha) e ser excessivamente rigoroso no cumprimento das penas (como no caso da jurisprudência do STJ sobre o regime semiaberto).

Seus defeitos revelaram traços de humanidade, o que pode ter nos ajudado a compreender que, independentemente da inteligência ou do preparo, julgamentos ainda são sujeitos ao espírito do tempo, ao clima do colegiado, às transmissões da TV e às pressões de todos os lados.

A velha ideia de Kant de que há dois tipos de juízos, um reflexionante – para questões abertas, como a arte, por exemplo – e um determinante – que seria o judicial, cuja análise por homens isentos levariam a decisões idênticas -, mais uma vez se comprovou equivocada. Daí a importância dos órgãos colegiados, em que embates sobre as mais diversas teses podem, por vezes, fazer com que o colegiado tenha acesso a todos os argumentos. É nesse aspecto que Joaquim Barbosa cometeu suas maiores falhas. Diversos foram os momentos em que o magistrado demonstrou ter pouco respeito pela opinião alheia, interrompendo ou tratando com arrogância – ou grosseria mesmo – seus colegas, apenas em razão das opiniões divergentes apresentadas.

No entanto, é também preciso reconhecer que, sem Joaquim Barbosa, muito provavelmente o processo do Mensalão não seria nem mesmo levado a julgamento, em razão da aplicação dos prazos prescricionais que extinguem a punibilidade dos réus.

Como todos os personagens da vida pública, suas diversas características serão levadas em consideração quando de seu julgamento histórico. Acredito que um bom historiador não poderia deixar de registrar a coragem de Joaquim Barbosa, ao mesmo tempo em que teria que destacar que seu convencimento da condenação dos réus o fez atropelar algumas normas processuais e penais.

Coragem justifica arrogância. Justiça não se confunde com justiçamento. Como todo grande personagem da história contemporânea, Joaquim Barbosa provoca questionamento justamente por equilibrar boa quantidade de qualidades e defeitos. Esperemos que a história saiba apresentar todas as faces desse marcante personagem.

Gustavo Theodoro

Valor Moral

Ações solidárias são valorizadas do mundo moderno. Ostentar trabalho voluntário em um currículo pode abrir portas em processos seletivos. Aparentar altruísmo pode conquistar simpatia na sociedade. Avaliar o valor moral de nossas ações tem sido uma constante preocupação de filósofos moralistas. Pode uma ação ser considerada “boa” qualquer que seja sua motivação?

O cristianismo considera positiva até a boa ação motivada pela culpa. Há ainda diversos relatos de Santos que tiveram uma considerável vida pregressa, às vezes entregue à luxúria ou à riqueza (cujo valor simbólico é negativo no cristianismo), e se redimiram, buscando uma vida dedicada a boas ações. Outras figuras de destaque do cristianismo – e até alguns personagens bíblicos – são descritos como portares de uma disposição natural para o bem.

Para Rousseau, o homem era naturalmente bom; a civilização é que atuava para corrompê-lo. Foi nessa época que surgiu o mito do bom selvagem, a teoria de que civilizações com menor grau de desenvolvimento, que viviam ainda em proximidade com a natureza e longe das invenções da civilização, eram naturalmente constituídas de pessoas melhores, com maior propensão de fazer o bem.

De certa forma, a teoria de Rousseau assemelhava-se às modernas teorias da tábula rasa, de que nascemos como uma página em branco, sendo gradualmente preenchida pela sociedade e pelos nossos pais, como se fôssemos só superego, na classificação de Freud. A teoria da tábula rasa não tem muito crédito científico. Assim, é muito provável que nossas propensões naturais tenham grande importância para nossa vida. Além disso, é bastante provável que não sejamos naturalmente bons nem maus, pois não somos unidimensionais.

É nesse contexto que interessa introduzir a visão de Kant sobre o assunto. Para Kant, o ato praticado como forma de troca, com objetivos utilitaristas, não tem valor moral. Em nosso exemplo inicial, praticar trabalho voluntário apenas para tornar o currículo mais atrativo ao mercado não apresenta valor moral.  Até aqui parece que sua visão se assemelha a de nossos moralistas contemporâneos.

No entanto, Kant sempre exige mais. Em seu edifício filosófico, a razão fornece a fundação, é o que sustenta toda sua filosofia. Para Kant, é a razão que deve governar nossas vidas. Kant constata que há pessoas naturalmente predispostas a fazer o bem. São pessoas generosas ou com muita empatia, que se preocupam verdadeiramente com o bem estar geral. Para Kant, boas ações praticadas por pessoas com inclinação natural para a generosidade ou para a empatia não dispõem de valor moral.

Nessa teoria, só aquele que se dispõe a refletir, só aquele que se apoia na razão e a partir dela atribui valor aos atos pode produzir ações moralmente superiores. É esse polêmico conceito de valor moral que queria apresentar no dia de hoje. Devo retornar a esse conceito no futuro para continuar discutindo moralidade.

Gustavo Theodoro