Mês: abril 2020

Nada Será Como Antes

O isolamento social exigido para evitar a rápida disseminação do Covid-19 promete alterar o modo como vivemos nossas vidas. O biólogo Atila Iamarino formulou uma frase no programa Roda Viva, exibido em 30/03/2020, que causou perplexidade na audiência: “Após o coronavirus, o mundo não voltará a ser o que era”.

Misturaram-se sentimentos de perdas, de nostalgia e de medo do incerto futuro. O sentido pretendido pelo divulgador científico era, no entanto, mais prosaico: dizer que os períodos de quarentena e relaxamento iriam levar talvez até dois anos. Depois disso, a vida dificilmente voltaria a ser como antes porque as pessoas não seriam mais as mesmas de janeiro de 2020. Aquele mundo que conhecíamos dificilmente existirá novamente.

No campo da economia, por exemplo, velhas certezas já estão sendo questionadas. Trump insistia com seus economistas que os EUA deveriam voltar a ter um grande parque industrial. As teorias liberais predominantes consideravam positiva a redução dos custos por meio do deslocamento da produção mundial para os países asiáticos de mão-de-obra barata. A crise no fornecimento de materiais médicos, respiradores e princípios ativos para remédios parece dar razão à Trump.

O aparentemente superado discurso da esquerda brasileira defendendo a necessidade de o Estado planejar o desenvolvimento industrial pode voltar a ser atual. A proteção de setores “estratégicos” (ainda há um certo constrangimento ao usar este termo) e a garantia de fabricação nacional de, por exemplo, princípio ativo de remédios e equipamentos médicos estará na ordem do dia quando tudo isso acabar. Economistas desenvolvimentistas já estão sendo requisitados para o debate econômico. Liberais como Paulo Guedes poderão ter dificuldades para entender a mudança que já está em operação.

O período de isolamento deve promover mudanças ainda nas relações de trabalho e de consumo, acelerando processos que já estavam em andamento. Não há motivo de deslocamento para executar tarefas que não exijam presença física. Os ultrapassados chefes que gostam de manifestar seu poder por meio de controle de horários terão suas vidas abaladas.

A adesão em massa ao comércio eletrônico pode ocasionar um ponto de não retorno para o comércio de rua. As lojas, nesse cenário, tenderiam a se reduzir e a se transformar em mostruários, quando necessário.

O impacto sobre a vida doméstica não será desprezível. A necessidade de intenso convívio familiar provocará alterações irreversíveis. Como bem ressaltou Andrew Salomon, “relacionamentos sólidos serão fortalecidos, mas laços frágeis se partirão”.

A classe média brasileira terá oportunidade de analisar sua relação com os trabalhadores domésticos. Os que não cozinhavam estão tendo que se virar. Os que nunca valorizaram o serviço de limpeza e a lida com as roupas irão repensar seus conceitos. Uma vida mais simples, com residências menores, pode ser revalorizada, assim como os quintais em que se possa tomar sol e plantar.

A forma de moradia adotada pela maioria da população, em grandes cidades, com uso predominante de transporte coletivo, em ambientes apertados, cafés e restaurantes com ar condicionado ou aquecimento, escritórios fechados, tudo estará em xeque quanto tudo isso passar. O impacto sobre as crianças da geração Covid-19 tenderá a ser mais duradouro.

O aumento da riqueza das classes média e alta e o barateamento das passagens aéreas levou ao aumento do trânsito das pessoas entre países. Nos últimos quinze anos, o número de pessoas que faz viagens praticamente dobrou. Viajar deixou de ser uma opção de lazer para ser uma obrigação, transformando-se quase em requisito de aceitação social. Ocorre que esse estranho hábito tornou quase instantânea a disseminação de agentes patogênicos. Isso estará em discussão quando tudo isso passar.

O mito do progresso contínuo e a autoimagem da humanidade como ser além-do-animal poderão sofrer abalos. Os pensadores conservadores nunca deixaram de reconhecer que a inteligência humana criava desafios que a própria inteligência humana poderia não resolver. Tudo aquilo que nos levou a ter energia e produtividade para alimentar e aquecer bilhões de seres humanos teve também como efeito mudanças climáticas que, no limite, poderão colocar em risco a própria existência da vida humana na terra.

O ideia do homem como animal superior que sempre progride, doma a natureza e transforma a si e a tudo ao seu redor é um mito que decorre do Iluminismo e de uma de suas expressões: o darwinismo. A vida asséptica das grandes cidades oblitera a visão de nossa condição de animal, que pode pensar, sonhar, projetar e ter consciência de sua morte, mas que segue sendo um frágil mamífero primata, sujeito a epidemias e extinção.

O isolamento poderá colocar a humanidade em contato com aquilo que ela tanto evita, que é olhar, em silêncio, para dentro de si mesmo. Nietzsche dizia que é necessário ter coragem para isso: “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você“.

A superação da crise não fará nascer um novo homem. Contrariando os progressistas, tampouco sairemos disso melhores, nem construiremos uma sociedade mais igual e harmoniosa. Nada será como antes? É difícil responder. Sabemos apenas que muitas de nossas certezas estarão em xeque e que, provavelmente, não iremos recuperar a vida que já tivemos.

Gustavo Theodoro