Mês: junho 2020

Realidade Compartilhada

A pandemia do coronavírus no Brasil tornou ainda mais visível a imensa divisão de nossa sociedade. Constato que os meios de informação já não são compartilhados, a realidade é mediada por uma imprensa não profissional. Os aplicativos de mensagem facilitaram a disseminação de informações falsas. Milhares de vozes se misturaram, provocando imenso ruído e diminuindo nossa capacidade de distinguir fatos de versões.

Esse tipo de funcionamento das mídias sociais formou as conhecidas bolhas, que dividem grupos expostos a realidades alternativas. A consequência disso é a aparente impossibilidade de trocas de experiência e visões do mundo.

Sócrates usava seu método descrito nos diálogos de Platão com único objetivo: a busca da verdade. Essa forma de debater está sendo gradualmente superada pelas técnicas utilizadas nas redes sociais, com o “cancelamento de pessoas” e o bloqueio dos que pensam diferente. Sem conversar não é possível encontrar pontos em comum a partir dos quais o diálogo é possível.

Não afirmo que conversar sempre permita a aproximação das pessoas. Resgato aqui A Pastoral Americana, o premiado livro de Philip Roth que, em um de seus aspectos, relata a dificuldade de diálogo entre Seymour Levov, um judeu que acreditava nos EUA liberal e tolerante, e sua filha, Merry, que passa por um processo de radicalização.

Fiel a seu sistema de crenças e a sua fé na capacidade do ser humano de agir racionalmente, Seymour tentou de todas as formas se comunicar com Merry. O diálogo entre adolescentes e adultos quase nunca é simples, visto que eles enxergam o mundo de ângulos diferentes. Enquanto o jovem tem expectativas quanto ao futuro, não teve oportunidade de testar sua potência nem por em prática suas ideias, os pais em geral já acumularam frustrações, derrotas e vitórias como parte da construção de seu lugar do mundo, tornando-os mais pragmáticos.

Nessa dissociação, o diálogo torna-se problemático. Daí a importância que a filosofia já deu às “pessoas de boa vontade”, aquelas cujo objetivo não é vencer o debate, mas conhecer o ponto de vista do outro para, talvez, inclusive acolhê-lo. Sendo uma idade de afirmação, a adolescência costuma desafiar até boas condutas do mundo adulto. Esses desafios darão contornos finais à personalidade do jovem em formação. A combinação entre idade desafiadora e divergência de perspectivas torna árdua a busca por pontos de contato.

Há semelhanças entre esse desencontro e o processo a que testemunhamos de separação dos polos políticos. Não se percebe boa vontade nos debates. Não há busca por troca ou compreensão dos pontos de vista diferentes. A emergência de termos como “lacrar” e “cancelamento” é demonstração disso. A “lacração” retrata um golpe bem aplicado contra o inimigo para regojizo de sua torcida, enquanto o “cancelamento” é o apagamento de alguém que teria produzido um pensamento “não adequado”. Não é assim que vamos evoluir como sociedade e pelo menos o mundo adulto não deveria admitir a persistência nesse caminho.

O comportamento extremista permeia as redes sociais e parece não haver como evitá-lo completamente. No entanto, é grave que a chamada “imprensa alternativa” o tenha adotado como prática cotidiana. Eu, que não sou nem petista nem bolsonarista, pude acompanhar a evolução desse tipo de fenômeno. Os blogs de esquerda da época dos governos petistas pouco diferiam da imprensa bolonarista hoje existente. O tom das críticas, no entanto, subiu no bolsonarismo.

Parece mesmo haver um movimento organizado para enfraquecer as instituições com vistas a um golpe no estilo Hugo Chávez, de quem Bolsonaro já se declarou admirador. A reação das instituições, no entanto, parece ainda ter forças para, se não impedir, pelo menos retardar o processo. Não se sabe até quando.

O mínimo que deveríamos aprender de nossa história recente é que abandonar a imprensa tradicional não nos traz benefício a longo prazo. Se há críticas pertinentes a fazer quanto a sua atuação, há um código de ética a ser seguido pela mídia tradicional, como atentar para os fatos, ouvir o outro lado e desvincular a parte comercial da editoria de notícias. A chamada mídia alternativa não cumpre quase nenhuma dessas regras, servindo para alimentar uma realidade paralela que, ao final, torna impossível até mesmo conversar com os outros, por absoluta falta de realidade compartilhada.

Ao final, as pessoas passam a acreditar mesmo que a ciência já comprovou os benefícios da coloroquina, que a auditoria da dívida nos dará dinheiro para nos dispensar dos sacrifícios, que o comunismo está para voltar a qualquer momento e que o coronavírus foi inventado para apressar o processo e que o novo marco legal do saneamento irá nos privar da água limpa e barata. O aprofundamento nesses assuntos revelaria que nenhuma das afirmativas está correta. Em sentido contrário, a “mídia alternativa” não se cansa de propagar teses incorretas e inverdades a respeito desses temas, tornando suas plateias – uso aqui um termo duro – fanatizadas.

A reconstrução do espaço público passará, inevitavelmente, pela recuperação de uma realidade compartilhada, sobre a qual possamos divergir e convergir, como adversários ou aliados políticos, mas nunca como inimigos ou militantes de seitas. Uma pandemia não apresenta lado positivo. Podemos, no entanto, fazer uso dela para induzir momentos de reflexão diante da crise, a partir dos erros que temos cometido, para que possamos dar passos na direção de uma sociedade mais empática, com maior capacidade de resolver conflitos e capaz de dar respostas às sempre crescentes demandas que se apresentam.

Para ajudar nesse processo deixo um único conselho de ordem prática: informem-se mais pelos jornais e menos pelas redes sociais. Escrevendo de forma ainda mais sucinta: assinem e leiam jornais.

Gustavo Theodoro

Frente Ampla

Cresce na sociedade a avaliação de que o Presidente Jair Bolsonaro não está à altura do cargo que ocupa. Os motivos apontados são vários e vão desde a falta de respeito às regras básicas de convivência democrática até o cometimento de crimes comuns. Acompanhada da redução na popularidade presidencial, em especial diante de suas atitudes no enfrentamento da Covid-19, o impeachment já á amplamente discutido na sociedade.

As restrições sanitárias impedem grandes manifestações populares. Ruas vazias não empurram o legislativo, que segue entorpecido aguardando a pandemia dar uma trégua para que talvez as reuniões presenciais possam ajudá-los a encontrar caminhos para o país.

Enquanto isso, o que se vê são iniciativas geralmente lideradas pela sociedade civil, que busca unir a oposição ao Governo em torno de uma causa comum. O processo de montagem dessa frente revelou as dificuldades que teremos que superar para que nossa sociedade possa ser reconstruída. A lista de vetos costuma ser infindável: “Eu não entro em lista com FHC”, “Se Moro assinar, eu não assino”, “O PT não deve fazer parte”, foram algumas das frases proferidas nas semanas que passaram. É de se perguntar se somos capazes, conjuntamente, de termos foco para atingirmos um objetivo importante que está além da luta política diária.

As experiências de acirramento das divisões, das brigas em grupos familiares e dos rompimentos de antigas amizades deveriam nos ensinar que algo não está correto na forma como temos nos portado. Política deveria ser o meio para construímos algo a partir das diferenças e não apesar delas.

O assessor da Presidência, Felipe G. Martins, escreveu o seguinte em seu twitter nesta semana: “Dizia Clausewitz que politica é a continuação da guerra por outros meios”. A citação está incorreta de uma maneira reveladora. A citação correta do general prussiano é, na verdade, que a guerra é a continuação da política por outros meios. Não se trata, evidentemente, de confusão: na visão dos que ocupam a presidência no momento, política é guerra e o adversário é o inimigo; logo, deve ser destruído.

Há tempos estamos contaminados por essa forma de ação política. Um antigo parlamentar do então PFL queria o fim do PT. Este, por sua vez, cultivou a visão de política como guerra, tal como agora defende Felipe G. Martins. O resultado disso são as dificuldades que observamos nas tentativas de formação de uma maioria democrática, multipartidária.

Para este momento é bom que recordemos o exemplo de Albert Camus, que, em 1946, um ano após a libertação da França da ocupação nazista, compreendia a necessidade de partilhar o país com seus compatriotas. Por sua atuação corajosa na resistência francesa, tornou-se uma referência no processo de reconstrução do país no pós-guerra.

Naquele momento, a situação era muito pior do que a nossa: enquanto o terror imperava, a maioria da população preferiu não se envolver e viver sua vida da maneira que melhor servisse a seus interesses. Havia ainda a questão dos colaboracionistas, que tinham inevitavelmente que ser incluídos em qualquer processo de reconstrução que almejasse o sucesso.

Sartre e, principalmente, Simone de Beauvoir cobravam de Camus uma postura mais radical com relação aos adversários políticos. A filósofa inclusive criticou a falta de menção direta ao fascismo em seu livro de 1947, A Peste, que retratava como metáfora o regime de confinamento, com o nazifascismo substituído pela peste. Mas Camus acreditava que política se faz primeiro com verdade, depois com tolerância e diálogo.

Voltando à nossa realidade, temos que ter em mente que cerca de 60% da população já votaram no PT e 55% votaram em Bolsonaro. Se a ideia da frente é constituir um grupo de pessoas que sempre pensaram como nós, estamos querendo fundar, talvez, um partido, não criar um movimento capaz de recriar o ambiente democrático e fazer frente, de forma coesa e incisiva, ao movimento autoritário que temos testemunhado.

Afastemo-nos, portanto, dos extremos, dos cancelamentos e dos vetos. O objetivo é retomar a ideia de que partilhamos um país e teremos que nos entender entre nós mesmos. Quando conseguirmos construir uma maioria, podemos nos lembrar de um trecho de Camus retratando o momento em que a epidemia começou a refluir: “Pode-se dizer, aliás, que a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste tinha terminado”. De minha parte, trabalharei pelo fim do império da peste.

Gustavo Theodoro