A Luta de Classes

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A teoria socialista tem como base fundadora o conflito entre a burguesia e o proletariado. O desenvolvimento europeu no pós-guerra provocou uma reificação do marxismo, uma alteração de sua natureza, de modo a refletir um mundo onde a escassez já não era tão visível e o estado do bem estar social havia mitigado as diferenças dos tempos da Revolução Industrial. O regime soviético fazia água aos olhos da maioria e já não era possível negar a forma totalitária do comunismo.

Para manter a teoria de pé, era necessário apontar novas espécies de divisões sociais, de modo a preservar uma ideologia que era tão cara a tantos. O jovem Marx foi resgatado e substituiu o aborrecido, mas bem mais consistente, Marx economista de O Capital. Movimentos feministas, negros, hippies, LGBT gradualmente tomaram o lugar da velha luta de classes, que ainda remanescia, mas com muito menos vigor.

Essas ideologias provocaram novas divisões na sociedade e nem sempre contribuíram para a causa que ostentavam defender. Diz uma antiga ex-feminista que seu movimento nasceu fazendo a defesa da mulher de classe média-alta, instruída e branca, ou seja, era essencialmente um movimento de elite, mas que ainda assim encontrou seu lugar no liberalismo de costumes dos anos 1960 e 1970 como um subproduto do marxismo.

As divisões sociais inventadas a partir da derrocada do comunismo não passaram despercebidas pela esquerda, que tratou de instrumentalizá-las, transformando os novos grupos minoritários em eleitores potenciais. De certa forma, a estratificação da sociedade em subclasses criou, com o tempo, um reflexo condicionado, uma forma automática de lidar com os fatos cotidianos.

Se um homem agride uma mulher, a humanidade da agredida submerge em face de seu gênero, de modo que o fato passa a ser tratado como uma classe: “a agressão da mulher pelo homem”, em oposição à agressão de um ser humano por outro. Da mesma forma, quando um negro é assassinado, o que perpassa o noticiário é o racismo da sociedade, independente das motivações do crime.

Como já me referi acima, esse modo de pensar, essa consciência coletiva, esse arquétipo junguiano tomou conta das discussões políticas e sociais. A esquerda pode ter sido afastada do poder, mas é certo que ela ainda dá as cartas na identificação e classificação dos eventos  contemporâneos.

Talvez por isso seja tão difícil encontrar uma narrativa adequada à esquerda para o depoimento do zelador do triplex do Lula. Como os aporéticos devem ter acompanhado, José Afonso Pinheiro, o zelador do triplex, depôs na última sexta-feira e se indispôs com os advogados de Lula.

De um lado estava um negro, pobre e trabalhador, o que faz ligar uma série de reflexos condicionados na intelectualidade bem alimentada. Advertido pela OAS de que deveria negar em depoimento à polícia que o triplex pertencesse à Lula, Afonso preferiu dizer o que sabia. Foi demitido, perdeu seu teto e deixou de dar sustento e proteção a sua família. Convidado a ser candidato nas eleições de 2016 pelo PP, concorreu a vereador como Afonso do Triplex, mas perdeu as eleições. Do outro lado estava o caríssimo advogado de Lula, branco, de classe alta, bem formado, ponderado, de linguagem escorreita.

Perguntado sobre as visitas de Lula, Afonso confirmou os fatos já narrados em depoimento na PF. Disse que ex-Presidente esteve no triplex por duas vezes, que era tratado como proprietário, que mostrara a D. Marisa as áreas comuns e reproduziu algumas falas da mulher de Lula.

O advogado de Lula buscou atacar a credibilidade de Afonso a partir de sua candidatura a vereador. O ex-zelador se irritou com as perguntas que buscavam tisnar sua honra e reagiu prontamente com a voz visivelmente alterada: “Posso falar o que vocês são? Vocês são lixo, lixo. Isso que vocês são”. Como expôs em seu depoimento, o ex-zelador foi colocado em uma situação impossível: se mentisse à polícia, poderia estar cometendo perjúrio; se relatasse os fatos, poderia ser demitido. Os caminhos eram difíceis e nenhum deles lhe parecera promissor. Se pudesse escolher, Afonso preferia ter ficado à margem dessa história.

Se fosse outro o contexto, o representante da elite branca estaria sendo apedrejado e açoitado em público por ousar atacar não uma pessoa, mas uma categoria social, o homem negro, pobre e trabalhor, um oprimido, despossuído e merecedor da proteção do Estado. Mas não. O que se ouve por aí é silêncio, na maioria das vezes, e pós-verdade (novo nome para mentira).

Luis Nassif publicou em seu blog um texto tratando do assunto. Já na segunda frase percebe-se uma distorção dos fatos: “…, além de chamar os políticos de lixo, não apresentou nenhuma prova para sustentar as afirmações dos promotores contra Lula”. Ora, o ex-zelador não chamou “os políticos de lixo”; lixo era Lula, seu advogado e as pessoas que os cercam. Já o Diário do Centro do Mundo, outro conhecido reduto da esquerda, reconheceu quem Afonso chamara de lixo, tanto é assim que foi noticiado que a banca de Lula cogita processar o ex-zelador por esses termos. Dois blogs, duas versões.

Por não saber como lidar com um depoimento contundente do representante de uma minoria que o esquerdismo diz defender, resta atacar a honra pessoal, a imagem do trabalhador negro, em revelação transparente de que é melhor salvar as aparências a ser fiel às categorias que sustentam suas teses. Entre a salvação pessoal e a preservação da verdade parece não haver hesitação sobre o caminho a tomar.

Aconselhava o conservador Burke a “nunca separar por completo os méritos de qualquer questão política dos homens envolvidos nela”. A forma como esse episódio está sendo tratado revela, como desconfiávamos, a natureza instrumental, descartável, sujeita às conveniências, dessas teses que professam a defesa das minorias. As ideologias, desconfie profundamente delas. Sobre os homens envolvidos nesses fatos, já temos elementos suficientes para julgá-los.

Gustavo Theodoro

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