Das Formas de Censura

redes briga

Na ditadura militar brasileira, a censura à liberdade de expressão se dava da maneira clássica. Censores servidores públicos avaliavam obras de arte, músicas, livros e jornais. Notícias ligadas à tortura e aos demais abusos cometidos pela ditadura não podiam ser publicadas. Muitas vezes com minutos de antecedência para o fechamento do jornal uma notícia era censurada. Alguns jornais passaram a publicar receitas ou poesias em seu lugar, procurando informar o seu público pelo menos da existência de algum tipo de censura.

Esse tipo de censura nunca deve ter fim. A Polônia na última semana aprovou lei que impede que, em qualquer publicação, os poloneses sejam de alguma forma relacionados ao Holocausto. Os campos terão que ser sempre Nazistas e os poloneses devem figurar como vítimas. O anti-semitismo polonês existente naquele período da história não poderá ser citado. Estabelecer qualquer tipo de relação entre o Holocausto e os poloneses agora é crime.

A Rússia proibiu o livro Berlim, de Antony Beevor, onde foi relatado o estupro das mulheres alemãs pelo exército vermelho nos últimos dias da Segunda Guerra. Apesar de se tratar de fato muito bem documentado, os governantes russos acham que essa história não deve ser contada. Trata-se, na visão deles, de uma forma de “proteger o povo” em uma espécie de “censura para o bem”.

A Ucrânia também proibiu outro livro desse mesmo autor. O livro é Stalingrado e conta de forma minuciosa a história dessa batalha decisiva para a Segunda Guerra. Eis que uma passagem ainda na parte inicial do livro o assassinato de 91 crianças judias por oficiais da SS ucraniana é contado em detalhes. Apesar de o fato ser bem documentado por cartas, relatos e ofícios da época, os governantes negam a colaboração de ucranianos nesse massacre. Para garantir que a história seja contado do jeito certo, proibiram a circulação do livro.

Há, no entanto, formas veladas de censura. Uma delas, bem comum em qualquer lugar do mundo, é utilizar o judiciário para limitar a atuação de quem utiliza a liberdade de expressão em sua forma mais plena. Se alguém escreve verdades desagradáveis e incômodas, em pouco tempo o autor terá que passar a lidar com advogados e tribunais. Contra o servidor público as formas de se obter o silêncio são ainda mais abrangentes.

Em um mundo dividido como este que nós vivemos, em que os sentimentos identitários foram potencializados e o sentido de grupo foi trabalhado, a censura se dá de modos ainda mais sutis. É comum ouvirmos que transitar nas redes sociais, especialmente debatendo política, é um exercício de masoquismo, visto que há pouco lugar para a ponderação e o aprofundamento das discussões. Qualquer polêmica que se entre pode ter como resultado ataques pessoais e xingamentos.

Com isso, pessoas ponderadas ou outras sem espírito para o conflito costumam se afastar das discussões. Tornando-se mais agudo o fenômeno, dois ou três grupos de extremistas, ainda que minoritários, podem monopolizar o debate, dando a impressão de que o mundo é uma divisão dual que pode ser explicado a partir de um eterno “nós contra eles”.

Aqueles que oscilam suas posições de acordo com o tema e não de acordo com o grupo a que pertencem passam também a ser hostilizados, retratados de forma depreciativa como “isentões” ou algo do gênero, como se os que não participassem do jogo de dois lados que eles criaram fossem mais perigosos do que os adversários naturais. Como resultado disso calam-se importantes vozes que poderiam moderar os debates e promover o entendimento entre as pessoas.

Resta-nos compreender esse processo, identificar e denunciar aqueles que praticam essa forma de censura. Não ter opinião aguda, pronta, imediata e certeira sobre os acontecimentos do mundo é, para mim, regra, e não exceção. Lembro de Merleau-Ponty, editor de um jornal da resistência durante os duros anos de ocupação Nazista, mas que nos anos seguintes, também de imensa divisão, disse que “não queria mais se engajar em tudo o que se passava, como se fosse um teste moral”.

É isso. Liberdade que sobrevive à censura é aquela que lhe garante escrever quando assim desejar, da forma que desejar, e se calar sobre outros assuntos, mesmo que ruidosos e geradores de grande interesse da opinião pública. O que precisamos recuperar neste pouquíssimo tempo de existência de redes sociais é nossa liberdade de expressar o pensamento, que tem sido sutilmente – as vezes nem tanto – limitada. Pois o que prometia enriquecer o mundo agora parece o estar apequenando.

Gustavo Theodoro

 

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