A Inútil Filosofia

Em uma das primeiras manifestações depois de empossado como Ministro da Educação, Abraham Weintraub declarou que iria reduzir as verbas destinadas ao estudo e ao ensino de filosofia e sociologia. Entre exemplos do Japão e alegações de respeito aos recursos públicos, foi sinalizado que o objetivo mais importante da universidade era permitir ao aluno encontrar, depois de formado, “um ofício que gere renda”.

Não se pode atribuir ineditismo a esse tipo de manifestação. Membros dos Governos FHC, Lula e Dilma em algum momento fizeram manifestação semelhante. Há uma terrível desconfiança em relação a essas áreas do conhecimento. Lá mesmo na inauguração da Filosofia Ocidental, na antiga Grécia, Sócrates foi condenado à morte acusado de corromper os jovens com seus debates inconclusivos.

Heidegger, possivelmente o maior e mais controverso filósofo do século XX, flertou com o Nazismo em 1933, quando assumiu a reitoria da Universidade de Freiburgo, demitindo-se da função pouco tempo depois. Mesmo tendo demonstrado apoio ao Nazismo nos primeiros momentos, antes da Segunda Guerra Heidegger já era visto com desconfiança pela elite Nazista, que considerava seus textos incompreensíveis e inúteis (há muito de verdade nessa afirmação). É bem conhecida a afirmação de Goebbels, Ministro da Propaganda de Hittler, que teria dito< “quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”. Isso partindo de alguém que certamente leu Kant – apesar de ter demonstrado em seu julgamento erros de compreensão dos imperativos categóricos – e apreciador de música erudita.

No bloco comunista, só autores referendados pelo Partido Único podiam publicar seus textos. Como era de se esperar, os escritos produzidos nesse tipo de ambiente não sobreviveram bem ao tempo. Salvador Allende, assim que assumiu o Governo do Chile, também instou a universidade produzir mais conhecimento útil, criticando indiretamente a tendência de aumentar a alocação de profissionais da área de humanas.

Observando por ângulo contrário, é cada dia mais difícil em todo mundo conseguir uma posição permanente em universidades na área de filosofia. Nos EUA, a concorrência chega a 300 doutores por vaga. Por isso é comum ouvirmos histórias de profissionais com três ou quatro PhDs. Nas universidades anglo-saxônicas, o pós-doutorado é, na verdade, uma forma de concessão de vínculo temporário aos milhares de doutores em filosofia e ciências sociais disponíveis no mercado.

Alan Guth, autor de uns dos artigos mais importantes do século XX na área de cosmologia, tem lançado em seu currículo quatros pós-doutorados. Quando questionado sobre isso, o famoso autor da teoria da inflação do universo disse que os PhDs se explicam pela dificuldade que ele teve em conseguir uma posição permanente em universidades. Os PhDs permitiram a ele seu sustento até que seu artigo mais importante fosse publicado e causasse grande impacto científico. Só então ele foi convidado para ser membro definitivo de um corpo docente.

Lucky Jim, escrito na década de 1950 pelo escritor inglês Kingsley Amis, retrata com um humor desconsertante a saga de Jim Dixon , um jovem estudante de história medieval em busca por colocação como docente em uma universidade de segunda linha. O retrato demolidor do ambiente universitário, a fábrica de intrigas, a simulação de profundidade, a desesperada busca por reconhecimento, as tentativas de afetar ambiente criativo, artístico, filosófico, nada escapa ao autor. Para quem conhece o meio, o livro é hilário.

No ambiente religioso, as dúvidas dos clérigos quanto à fé são tão comuns quanto dentre as pessoas comuns. Do mesmo modo as dúvidas sobre a necessidade de estudo das ciências humanas não são exclusivas da sociedade civil. Por que estudar uma ciência não empírica, de resultados não verificáveis, que produz textos em sua maioria herméticos, destinados preferencialmente a seus pares e que quase nunca, no caso brasileiro, transborda as fronteiras nacionais? Não haverá resposta fácil a esta pergunta.

A situação é agravada por uma característica exibida pelas ciências humanas, em especial pela filosofia: a impenetrabilidade. Kant é constantemente retratado como um autor de difícil leitura, mais por sua ambição de tratar de todos os aspectos da questão estudada e pela ausência de disposição em exemplificar, menos pelo hermetismo de seus textos. Nietzsche criou dificuldades muitas vezes insuperáveis à sua interpretação, seja pela opção pelas metáforas e alegorias, seja pela extensão de sua obra, seja pela falta de linearidade de seu pensamento. Heidegger escreveu um livro quase impenetrável (Ser e Tempo), incompleto (o prometido segundo volume nunca foi escrito), mas que ainda assim continha uma filosofia que, em diversas passagens, justificava seu estudo.

No final do século passado, Alan Sokal publicou um poderoso ataque ao estudo das ciência humanas. O físico Sokal havia se tornado famoso ao conseguir publicar um artigo na revista Social Text. A leitura cautelosa do artigo revela um notável embuste intelectual, com propostas non sense como a de que a “gravidade quântica” era uma construção social e linguística. O êxito na publicação do artigo revelou que a técnica escrever textos herméticos, tão cara aos pós-modernos, tinha livrado os pensadores da necessidade de significado. Em outras palavras, muitos dos textos publicados, repletos de citações, não passavam de embustes repletos de erudição vazia.

Logo depois Sokal escreveu um livro (Imposturas Intelectuais) abordando a utilização de conceitos científicos de base matemática pelos pós-modernos. Difícil ter o mesmo apreço intelectual por Jacques Lacan, Jean Baudrillard, Julia Kristeva, Deleuze e Guattari depois das análises do físico americano.

O silêncio dos intelectuais em momentos chave da história ajudaram a solapar seu prestígio. Os exemplos são muitos, vão desde o apoio de Sartre à URSS após os julgamentos forjados e após a invasão de Praga, até o apoio de nossos intelectuais ao petismo nos anos recentes.

O embate entre sociedade, Governo e a área de humanas não terá fim. A disputa por verbas e provedores é parte integrante da história das ciências sociais. As críticas a sua utilidade jamais lhe deram fim, tampouco a falta de verbas. O que de fato limita o pensamento é a censura, a ditadura e, em especial, o totalitarismo. Ainda que Weintraub tenha intenção de extinguir o estudo da filosofia, ele não obterá êxito. Orwell fez um personagem dizer em “1984” que “poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhe a forma que você quiser”. Por enquanto não temos um Governo com esse poder.

Gustavo Theodoro

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