As eleições da França confirmaram a tendência atual de redução do eleitorado do que se conhece por esquerda. Por mais fluido e indecifrável que o termo “esquerda” possa parecer, é certo que os partidos que assim se intitulam têm visto seu eleitorado minguar, enquanto uma direita que andava adormecida na segunda metade do século XX voltou a ganhar terreno. Não há analista que não se sinta tentado a abordar esse fenômeno, com vistas a compreender o que deu errado, se é que ser minoritário seja sintoma de algum problema.
O Partido Socialista teve um importante papel histórico na França da primeira metade do século passado, apesar de ter assumido só brevemente o governo daquele país. Sob a liderança de Leon Blum, o partido ganhou respeitabilidade ao evitar que fosse transformado em aparelho do partido comunista soviético, mantendo o foco no socialismo utópico. O partido socialista do período das guerras mundiais, apesar de minoritário, angariou o respeito inclusive de seus adversários. O que deu errado desde então? Por que hoje, além de diminuto – com inéditos 6% do eleitorado -, perdeu o respeito da população?
Ao que parece, o campo da esquerda nunca chegou de fato a ser majoritário. Mitterrand, apesar de ter sido eleito pelo partido socialista, foi antes um social-democrata, senão um centrista, assim como o favorito das atuais eleições, Emmanuel Macron. Hollande em sua campanha disse:
“Meu adversário de verdade não tem nome, nem rosto, nem partido, nem será candidato. Mas é quem governa. É o mundo das finanças, que tomou o controle da economia, da sociedade e de nossas vidas”.
É notável a diferença entre discurso e prática. No ano passado o governo se afundou nas discussões das reformas trabalhista e previdenciária, assumindo uma posição claramente pró-mercado. A promessa era a de que com as reformas o desemprego iria diminuir, o que não ocorreu. Não havia como o partido socialista sobreviver, no curto prazo, a Hollande.
O caso francês guarda muitas semelhanças com o brasileiro. Talvez a diferença esteja na quantidade de concessões que os simpatizantes da esquerda brasileira estão dispostos a fazer para manter o apoio a seu grupo. Para os franceses, parece que a paciência se esgotou.
Em 2002, para vencer as eleições, Lula precisou escrever a Carta ao Povo Brasileiro – que Emílio Odebrecht agora diz que foi por sua inspiração -, rasgando compromissos históricos da esquerda, como a auditoria da dívida pública, a democratização dos meios de comunicação, o fim do imposto sindical, a reforma agrária, a adoção de impostos progressivos e sobre grandes fortunas, dentre outros. Os governos petistas fizeram três reformas da previdência, pondo fim à paridade e à integralidade da aposentadoria dos novos servidores públicos. Em 2012, foi aprovada nova reforma, dessa vez igualando a aposentadoria dos novos servidores aos da iniciativa privada.
O partido que levantava a bandeira da ética era – desde o início, agora sabemos – aliado das maiores empreiteiras do país. Tudo indica que os bancos e as demais grandes empresas do Brasil eram também “parceiros”, sendo que o apoio se dava por meio de trocas de benefícios ou obras para contribuições em regime de caixa 2, ou seja: era propina mesmo.
Até 2008, Lula manteve disciplina fiscal superior a de FHC, que teria adotado ideias neoliberais em seu governo. Se não tivesse sido apeada do governo, Dilma encaminharia nova reforma da previdência, exigência dos mercados para a volta da “confiança na economia”. Não há indícios de que a esquerda brasileira tenha se afastado dos líderes que traíram seus ideais.
O socialismo francês também exibe esse histórico. O apoio da esquerda francesa ao stalinismo sobreviveu aos julgamentos forjados de Moscou e à Primavera de Praga, quando mesmo o mais desavisado dos mortais já tinha tomado consciência da natureza do regime soviético. Porém o sofrimento e os desajustes momentâneos não poderiam colocar em cheque o sentido da história, cujo destino já estava escrito e significava a crise final do capitalismo, com o comunismo se espalhando pelo mundo, destruindo nações e fazendo emergir uma comunidade de operários.
Em 1955, Raymond Aron escreveu sobre a esquerda francesa:
“O fim sublime desculpa meios horríveis. Moralista contra o presente, o revolucionário é cínico na ação e se indigna contra as brutalidades policiais, as cadências inumanas de produção, a severidade dos tribunais burgueses, a execução de acusado cuja culpa não foi demonstrada a ponto de eliminar todas as dúvidas. Nada, além de ‘humanização’ total, pode acalmar a sede de justiça. Mas, quando esse mesmo revolucionário decide aderir a um partido tão implacável quanto ele contra a desordem estabelecida, eis que, em nome da revolução, tudo o que até então era incansavelmente denunciado é perdoado”.
No dizer de Aron, os defensores do comunismo daqueles tempos não eram partidários ou simpatizantes, mas sim fanáticos, dispostos a tudo superar para manter suas crenças e seus ídolos. Impossível não relacionar tal descrição ao momento em que vive o Brasil. Se na França esses mitos finalmente parecem ter sido superados, aqui ainda são fortes as teses que desculpam roubos de estatais, corrupção generalizada, lucros estratosféricos dos bancos, reformas alinhadas com o mercado, favorecimento de empreiteiras – tudo em nome de um “bem superior”: o combate aos fascistas, ou pior, aos neoliberais.
A França avançou por um lado, mas corre riscos por outro. As extremas direita e esquerda conseguiram cerca de 40% dos votos. Apesar da aversão de seus apoiadores entre si, Le Pen (extrema direita) e Mélecron (extrema esquerda) compartilhavam muitas de suas pautas: ambos se referem a um passado idealizado, defendem o protecionismo, a redução na participação dos organismos multilaterais, a reaproximação com a Rússia, a renegociação da participação francesa na União Europeia, a redução na idade média de aposentadoria e a ampliação da seguridade social. Olhando por esse prisma, dá a impressão de que, se Le Pen se anunciasse de esquerda, receberia os votos de Mélecron. Não se desconsidera que Le Pen seja xenófoba e que há diversos traços de fascismo em seu discurso, mas que as semelhanças são surpreendentes, não há como negar.
O que salta aos olhos nisso tudo é que as posições extremistas estejam ganhando corpo. A Venezuela parece próxima de uma guerra civil. Os EUA são um país dividido pelo muro da incompreensão. O Brexit revelou que o sentimento internacionalista, que parecia superar o nacionalismo, refluiu.
No Brasil seguimos muito longe de um entendimento, pois pessoas de bem se dividem, acirram suas posições, defendendo bandeiras vermelhas ou amarelas. Enquanto isso a elite política e econômica quer continuar dando as cartas, pois, ao final, sua capacidade de composição é maior do que a do povo. Talvez não tenhamos aprendido que, apesar de as filosofias não se conciliarem, os interesses podem se combinar.
Nesse mundo, sinto-me como Pessoa, “estrangeiro aqui como em toda a parte”, mas sigo acreditando que o debate aberto de ideias possa aproximar, tanto aqui como na França, campos aparentemente antagônicos, na busca de uma sociedade mais pacífica, menos desigual, com capacidade de produzir riqueza e segurança aos cidadãos. E aí, vamos debater?
Gustavo Theodoro