Mês: dezembro 2015

Sobre o Tempo

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O ser humano mistura-se e distrai-se para não dar de cara com ele mesmo. A psiquiatria trata por pânico ou ansiedade generalizada a preocupação exagerada quanto ao futuro, e depressão a preocupação com o passado.

Há uma fábula da antiguidade, atribuída a Higino, utilizada por Heidegger, que parte da preocupação para, em algum momento, vincular o Ser ao tempo:

 Quando certa vez a Preocupação atravessou o rio, viu um terreno argiloso. Refletindo, pegou um pedalo dele e começou a formá-lo. Enquanto refletia sobre o que estava criando, Júpiter aparece. A Preocupação pede-lhe que confira espírito à argila formada. Júpiter lhe concede isso com prazer. Mas quando ela quis dar seu nome à figura, Júpiter proibiu e pediu que lhe desse o nome dele. Enquanto Júpiter e a Preocupação brigam por causa do nome dela, também a Terra se manifestou e quis que a figura tivesse nome dela, pois afinal ela lhe dera um pedaço de seu próprio corpo. Os litigantes chamaram Saturno como juiz. E Saturno deu-lhes a seguinte decisão aparentemente justa: Tu, Júpiter, porque lhe deste o espírito, terás o seu espírito depois da morte; tu, Terra, que lhe deste o corpo, receberás seu corpo. Mas porque a Preocupação formou essa figura antes das demais, enquanto ela viver será propriedade da Preocupação.

Preocupação, para Heidegger, relaciona-se com a atividade de prever e planejar. É a finitude da vida – e a consciência dela – que nos coloca diante das preocupações. Apesar do belo e difícil capítulo sobre a morte presente em Ser e Tempo, a preocupação não se relaciona com o medo da morte; se está relacionado ao medo de algo, trata-se de medo da vida.

Esses pensamentos foram propagados por vários pensadores dos anos 1920. Mas Heidegger sempre negou que sua doutrina tivesse algo relacionado com a crítica da vida de seu tempo. Em dizer mais erudito, suas preocupações eram ontológicas, e não ônticas.

Seguindo a esteira do pensamento disposta em Ser e Tempo, o ente seria naturalmente disposto a alguma coisa. Para Heidegger, essa disposição é tratada por ele como uma impropriedade. É na indisposição que surgem o fastio e o tédio. No que ele conclui que o ser evidenciou-se um ônus. Assim, as distrações se tornam “necessárias”, como uma fuga do tédio e do medo, que aproximariam o ser dele mesmo.

Tal como a transformação kafkiana em Metamorfose que trata de nossa inadequação para a vida, Heidegger busca revelar que, se a vida das distrações é repleta de preocupações, a vida do ente voltado para ele próprio também é repleta desse sentimento de inadequação.

A não-adaptabilidade poderia reduzir as chances de sobrevivência biológica de nossa espécie. Por isso o ser humano age de acordo com o princípio do alívio. Assim, ele passa a evitar aquilo que, para os filósofos, seria a essência da dignidade humana: a espontaneidade, a reflexibilidade e a liberdade.

Com o tempo o ser humano cai no inevitável e deixa que a civilização alivie o peso do ser. Nesse sentido, é Robert Musil (citado por Rüdiger Safranski), que conclui: “é preciso valorizar quando um homem ainda tem o desejo de ser algo inteiro”.

Heidegger suspeita que o alívio seja uma manobra de fuga, uma impropriedade. O propriamente herói carrega como Atlas o peso do mundo em suas costas. Aqui se antevê a crítica à massificação, à urbanização e a indústria da diversão, tão presente nos tempos de Weimar. Nessa vida cada um é outro e ninguém é ele mesmo.

Saindo de Ser e Tempo e voltando às palestras do tempo de Freiburg, em 1929, Heidegger deixa seus conceitos um pouco mais claros. É no momento do medo que as dissimulações se quebram. A filosofia só começaria de fato quando temos a coragem de deixar o nada acontecer. É impossível ler Heidegger e não pensar em Nietzsche, que lançou o mesmo desafio, de olhar de forma arregalada para o abismo em busca do Ser. E de Platão, que levou seu filósofo para além das fronteiras do visível em busca da verdade, o tirando da caverna, do mundo de sombras.

Heidegger deu importantes passos em sua filosofia. Infelizmente a leitura de sua filosofia é incognoscível para a maioria das pessoas. É importante considerar que, ao contrário de Nietzsche, Heidegger jamais pode ser tomado como guia de vida. Suas análises são desinteressadas e, em certo momento, – de forma surpreendente – é feita uma inversão em que o ser impróprio passa a ser mais natural do que o próprio, na linguagem de Heidegger. Ou seja, a vida de distrações passa a ser a natural. Antes de conselhos úteis para a vida, sua filosofia trata de refletir sobre o que nos constitui sem necessariamente chegar a um desfecho. Trata-se de filosofia de alta qualidade.

Recomendo aos aporéticos que chegaram ao final deste texto que deixem, neste momento, as preocupações de lado, ainda que nossa vida pertença a elas. Sabemos que nossa dívida é apenas com a Terra, que terá de volta nosso corpo, e com Júpiter, a quem devolveremos nosso espírito. Enquanto esse momento não chega, desejo a todos um feliz ano novo, pois o tempo e sua passagem é também tema desse artigo. E se estamos preocupados com algo, isso é sinal apenas de que estamos vivos. Feliz 2016.

Gustavo Theodoro

Extremismo

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A entrada de imigrantes na Alemanha tornou relevantes grupos de extrema direita que condenam a política de Angela Merkel de abrigar refugiados sírios em seu país. Mais de um milhão de refugiados foram acolhidos por aquele país em 2015.

Os grupos extremistas alemães, minoritários, classificam os políticos de “traidores do povo” e os jornais são chamados de “conformistas”. Esses grupos tratam a imprensa por termos como “mídia mentirosa”, por evitar criticar a política de Governo alemã. Mas uma característica nesse grupo chamou-me a atenção: o fato eles evitarem a mídia convencional e confiar mais em suas próprias fontes de informações, como blogs independentes.

Esse fenômeno está muito longe de ser isolado. Os EUA convivem com a Fox News há algum tempo e é muito provável que uma candidatura com a de Donald Trump não se mostraria tão resistente sem o radicalismo presente nesse veículo de mídia.

Da mesma forma, aqui no Brasil o caminho tomado pela Revista Veja e pela Carta Capital, para citar apenas dois exemplos, revelam como a informação pode ser tratada de uma maneira especial com vistas à formação e manutenção de grupos bem definidos. Eu não me considero nem de esquerda nem de direita, pois esses conceitos me parecem insuficientes para abrigar minha personalidade – modestamente, por certo -, e talvez por isso percebo imediatamente, nas redes sociais, a forma de propagação das informações disseminadas, inicialmente, por esses e outros veículos mais radicais.

Talvez também por começar a ter idade de comparar períodos bem diferentes de nossa história, os eventos às vezes parecem se repetir como farsa. Lembro-me claramente de Marília Pera ser ofendida por petistas por seu apoio à Collor. Lembro-me de Regina Duarte ser defendida por algumas publicações simpáticas ao Governo FHC quando ela começou a sofrer patrulha por sua atuação nas campanhas do PSDB.

De uns tempos para cá, petistas e simpatizantes passaram a ser vaiados e xingados nas ruas por anti-petistas. Cada episódio desse cria uma onda de indignação de um lado e propagação satisfeita de outro. Joaquim Barbosa foi abordado por simpatizantes do petismo na última semana e fenômeno semelhante ocorreu, com sinais trocados.

No episódio envolvendo Chico Buarque, a divisão das redes rapidamente se fez presente. De um lado, os que manifestaram aprovação pelo fato de “petistas” serem cobrados nas ruas. De outro, vi correr uma onda de indignação. Ambos os lados recorriam a palavras e termos que buscavam ressaltar preconceitos contra os quais deveríamos nos resguardar: “petista”, “mora em Paris”, “Leblon”, “Garneiro”, “coxinhas”, “Rouanet”, os termos se propagam e se disseminam, mas poucos de fato parecem ter assistido ao vídeo, ou o assistiram já contaminados por sua torcida.

A principal discussão ocorreu entre um “rapper” e Chico Buarque. Foi uma discussão típica de rua, com alguns personagens nitidamente alterados (para não dizer bêbados). O “rapper” foi agressivo em certo momento, Chico foi irônico, mas reagiu com tranquilidade. O episódio terminou com um aperto de mãos.

Não fosse o atual clima de extremismo que se observa no país, seria incompreensível um episódio como esse causar tanto debate. Pior é que o debate é, usualmente, maniqueísta, com cada grupo repetindo suas verdades e suas indignações.

Eu estou só assistindo a esse acirramento de ânimos. Participação política é necessária. Mas o extremismo não é requisito para se discutir política. Penso que deveríamos ouvir mais os argumentos dos outros, abrir o leque de leituras e evitar participação em grupos sectários ou radicais. A história nos mostrou que os radicalismos quase sempre levaram a rupturas institucionais e crises do Estado. E a Alemanha Nazista é um bom exemplo disso. Por mais difícil que seja a situação atual, o caminho institucional, do respeito às leis e aos próximos continua sendo o recomendado.

Gustavo Theodoro

A Crise da República

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Estamos em profunda crise. O noticiário frenético é prova disso. Cada dia de noticiário a que nos furtamos de acompanhar implica considerável desatualização do cenário político. Os números da economia não cansam de apontar o caminho da depressão. As informações do judiciário não parecem indicar que estamos perto do fim das investigações. O governo dá sinais de que não será capaz de entender o momento em que vivemos.

Nesse cenário, tivemos uma das semanas mais conturbadas dos últimos tempos. O STF definiu o ritmo do impeachment, privilegiando o rito já aplicado no caso Collor e o voto aberto. A questão de possível suspeição de Eduardo Cunha – tema que eu abordava com desconforto – foi enfrentada e superada. O papel do Senado foi valorizado (tal como já fora no impedimento de Collor, ainda que não déssemos a devida atenção àquele fato) e a votação da comissão por votação secreta e sem a indicação de líderes foi adiada.

Não escondo que não sou defensor desse governo. Acho-o perigosamente amador no campo da economia e incompetente da atuação política. Além disso, seu pragmatismo, acompanhado de uma leitura muito malfeita de Maquiavel, levou sua atuação no campo ético para padrões semelhantes ao do PMDB (se é que isso já não estava presente no DNA do PT). Ainda assim, no regime presidencialista, a importância do escrutínio, da eleição, por ser direta, deve ser constantemente valorizada.

Em um regime parlamentarista, o governo Dilma já teria sofrido seu voto de desconfiança e estaríamos já, a essa altura, livres disso. Mas escolhemos, mais de uma vez, o regime presidencialista. Nesse regime, o presidente é um dos poderes da república e sua legitimidade advém do voto popular. Removê-lo é um processo traumático, que exige um rito específico e 2/3 dos votos das duas casas legislativas.

Sob esse prisma, foram importantes as decisões do STF desta semana. Ao deliberar sobre o rito, a atuação de Eduardo Cunha, o papel do Senado e a abrangência do voto secreto, o STF deu as condições para o impedimento. O processo, no entanto, é político, visto que são políticos, e não juízes, que apreciarão a matéria. Cumprindo o rito, indicando os crimes cometidos e sendo aprovado pelas duas casas legislativas, não há quem poderá dizer que impeachment se confunde com golpe. Quer dizer, sempre haverá, mas creio que quem o fizer estará no campo das torcidas. Mas é certo que o impeachment, se aprovado agora, com esse rito, será legítimo. Agora não vai ter golpe mesmo; se a presidente for afastada, terá havido impeachment.

 Duas áreas atuam fortemente sobre os prognósticos para o futuro. Os desdobramentos criminais da operação lava-jato tendem a influenciar de forma flagrante esse processo. Michel Temer, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, peças fundamentais desse jogo, estão sob forte pressão, sendo que os dois últimos já foram denunciados pelo Janot. As forças policiais e judiciárias se aproximam inexoravelmente de Lula, de seus amigos e de seus filhos. E será difícil que campanhas políticas, inclusive da Dilma, não tenham recebido dinheiro fruto da corrupção (prática semelhante à adotada pelo tucano Eduardo Azeredo, ex-Presidente do PSDB, que, aliás, foi condenado por peculato nesta semana).

No campo da economia, é bastante provável que o cenário se deteriore daqui para frente (ainda que possa esboçar alguma reação no curto prazo). Quem acompanhou as ruas na semana que passou deve ter percebido que os ditos movimentos sociais queriam a cabeça de Joaquim Levy e o fim de sua política de ajuste fiscal. Nossa dívida pública – na casa dos 70% do PIB – tem padrões europeus, sem a renda per capita deles, o que torna nossa situação muito pior. Nessa crise política, o Governo não tem maioria e sequer vontade para levar a cabo as necessárias reformas estruturais.

A conta dos juros não para de crescer. É, ao lado da previdência, nossa maior conta. Fazer reforma da previdência tem custo político alto. Baixar os juros atende à pauta dos economistas desenvolvimentistas e aos grupos que apoiam o Governo.

Os juros não são altos porque o Governo quer, evidentemente. Se um governo gasta, continuamente, mais do que arrecada, o desequilíbrio acaba se refletindo em algum indicador. O velho método do século XX era emitir moeda e, com isso, fazer frente aos pagamentos. Mas isso gera inflação que, desde a República de Weimar e de Hayek, se sabe provoca desequilíbrios que impedem o crescimento sustentável da economia, além de aumentar a desigualdade social, por se tratar, de certo modo, de um imposto aplicado sobre as camadas mais pobres.

A maioria dos economistas defende que os juros são a principal ferramenta no combate à inflação. Isso é um problema para países em que a relação dívida é alta em relação ao PIB. Ainda mais se a renda per capita for baixa. É esse exatamente o caso do Brasil. Ao mesmo tempo em que precisamos aumentar os juros para conter a inflação, ao aumentar juros, com o atual nível de gastos, provocamos aumentos na dívida pública, o que aumenta a desconfiança dos mercados, que passam a exigir juros cada vez maiores.

É nessa ciranda que o Governo Dilma parece ter se voltado a suas próprias ideias econômicas. Para ela e para o seu grupo de economistas, juros nos são impostos pelos “rentistas”, que colocam governos de joelhos para auferir ganhos com risco zero. Ainda segundo esse modo de ver as coisas, o desenvolvimento precisa ser “orientado” pelo Estado, por meio do aumento do crédito subsidiado e até mesmo da participação do Governo em empresas privadas. Esse grupo ainda acredita – inspirado nas teorias do moto-contínuo – que o descuido nos gastos públicos, se corretamente direcionado, provocará crescimento da economia que propiciará o retorno, para os cofres públicos, do dinheiro investido.

É um conjunto de ideias mal-ajambradas, talvez inspiradas pela má leitura de Stiglitz e Krugman, mas cujo teste já foi feito no Brasil e teve como resultado o terrível ano de 2015, é esse conjunto de ideias que está sendo recuperado. Não sei quais as consequências de dobrarmos essa aposta.

Nesse cenário de depressão econômica, incertezas políticas e com a volta da nova matriz econômica, não tenho dúvidas de que o melhor para o país seria termos um novo Governo com maioria parlamentar e apoio popular. Estou certo de que não vamos começar a melhorar com essas pessoas que nos representam. Nesta semana o STF deu o caminho para o impeachment. Ele é penoso, difícil, mas agora o reconheço por legítimo.

A anulação de alguns procedimentos adotados até o momento pela Câmara talvez nos permita que o trâmite do processo se dê quando os efeitos da operação lava-jato já se façam sentir, com o afastamento de Cunha, Renan e com o comprometimento de Temer. Estaremos em uma emboscada sem tamanho. E as soluções não estarão prontamente à vista. Para os que gostam de fortes emoções, 2016 promete. Infelizmente, olhando para o tabuleiro acima descrito, não é momento de se ter muita esperança no curto prazo. A crise continua e seguimos com força rumo à depressão econômica. Não se sabe quem será o Presidente no final de 2016, tampouco sabemos se esse presidente estará à altura dos desafios que o País tem pela frente.

O que se pode recomendar às pessoas é que exerçam sua cidadania, se informem das melhores maneiras possíveis, pois, como diziam os pensadores da escola de Frankfurt com sua dialética do esclarecimento, é o acesso à informação e ao conhecimento que nos levará ao caminho da liberdade. A boa democracia se faz com cidadãos participativos. Enquanto a situação não se resolve, faz-se necessário que nos informemos, acompanhemos e atuemos nessa crise. O problema não é só dos políticos e dos economistas. Cada contribuição nesse processo, indo às ruas – para que lado for – debatendo ou formulando pensamentos pode ser importante. O momento não é de recolhimento, mas de participação. Com educação e respeito pela opinião alheia. Mas com participação.

E o ano ainda não acabou.

Gustavo Theodoro

O Peso das Instituições

Eu não gosto do Governo Dilma. Acho que ela não terá capacidade – em especial liderança – para tirar o País da crise em que estamos. Houve estelionato eleitoral. Houve erros na condução da economia. Houve descontrole nas contas públicas. Parte da crise política é de responsabilidade do PT e do Governo Dilma. No entanto, o impeachment aceito por Cunha após o PT ter anunciado que iria aceitar a denúncia contra ele no Conselho de Ética torna todo o processo viciado. Há robustas provas contra Eduardo Cunha. Dinheiro da Lava-Jato e contas na Suíça. Tudo documentado.

Já crime de responsabilidade por descumprimento da Lei Orçamentária me parece pouco para o impeachment. Pela interpretação literal, até acredito que a Lei preveja o impeachment para esses casos. Ocorre que não é assim que os tribunais entendem a matéria. Há tolerância para isso em todos os Estados e Municípios. Precatórios não são pagos. Decisões judiciais não são cumpridas. Rombos são produzidos. E a pena para esses casos é, quando muito, a inelegibilidade. Ou seja, é correto condenar a Dilma a não se candidatar de novo? Sim. Mas impeachment por isso significa utilizar duas réguas diferentes para a mesma medida.

Se e quando comprovarem que a campanha dela recebeu dinheiro de corrupção, o TSE pode cassá-la. Nesse caso há precedentes. Governadores e Prefeitos já foram cassados por isso. Mas o TSE só cassa quando julga que há provas suficientes. Julgamento político iniciado por um poder cuja liderança está comprometida com base em matéria para a qual não há precedente fará mais mal do que bem a nossas instituições. Não deixemos nosso anseio por mudança da situação atual levar a um atraso ainda maior em nossas instituições.