O problema da natureza humana, que Santo Agostinho tornou central em seus estudos, quaestio mihi factus sum, a questão que me tornei para mim mesmo, parece insolúvel mesmo com os avanços da neurologia e da psicologia.
Com o recente conhecimento do nosso lugar no mundo, o Homem deveria ter se tornado menos presunçoso e alguns valores que nos são muito caros deveriam ter sua importância posta sob perspectiva.
Apesar de tudo o que se diz sobre os humanos, é certo que somos seres condicionados e, por consequência, previsíveis. A expressão o hábito faz o monge é cada dia mais verdadeira e tem sido comprovada pela moderna psicologia comportamental.
O fato é que as ciências foram muito bem sucedidas no estudo da matéria e das coisas, nos aventuramos a dizer a idade do universo e a prever o tempo em que em que o Sol engolirá a Terra. Mas a ciência ofereceu pouquíssimas respostas sobre o humano e às perguntas filosóficas formuladas desde os pré-socráticos.
No ciclo das grandes navegações, o mundo se expandiu, mas com a prova de sua finitude deu a impressão de que diminuiu. A prevalência da tese de Copérnico tirou o Homem do centro do universo. Kepler e Galileu transformaram nosso planeta em quase nada ligado a uma pequena estrela de uma das milhares de galáxias do mundo.
Mas temos o livre-arbítrio, dirão alguns. No entanto, é de se ressaltar que não escolhemos a cidade em que nascemos, a família em que somos criados, a língua materna, a cultura que absorvemos, tudo aquilo que, para muitos, nos faz o que somos (acho que seria mais preciso dizer aquilo que contribui para o que somos, visto que a teoria da tábula-rasa, de que nascemos como uma folha em branco, foi derrubada pela ciência).
John Gray, de Cachorros de Palha, representante do novo conservadorismo inglês, tem combatido este nosso fetiche pelo livre-arbítrio, que teria sido supervalorizado nos últimos tempos como forma de manter a importância de nossas ações. Ele poderia ter escrito as linhas deste texto até aqui, despejando com método seu pessimismo desencantado.
É certo que tivemos sim que repensar nosso lugar no mundo e acho que já percorremos este caminho. Ao mesmo tempo em que se apega aos hábitos, o Homem costuma mostrar imensa capacidade de adaptação. Hoje consideramos conhecimento adquirido o fato de não sermos mais o centro do universo e de não sermos assim tão especiais. Exceto para os filósofos, esses fatos tiveram muito pouco impacto no modo como vivemos nossas vidas. Mesmo o famoso livre-arbítrio não está na pauta da maioria da humanidade.
Esse novo conservadorismo é mais eficaz quando volta suas atenções para a nova crença dos nossos tempos, a crença no progresso contínuo e interrupto da ciência, da cultura e dos sistemas políticos. O mesmo John Gray, em Missa Negra, dá bons argumentos de como a crença no progresso se transformou na nova religião da humanidade.
Voltando ao nosso tema, ao problema na natureza humana, esta é daquelas questões cujo percurso é que justifica a viagem. Sim, talvez seu estudo não tenha utilidade, o que me remete à Lessing em sua cruzada contra o utilitarismo: Para que serve servir?
Gustavo Theodoro
De novo a perturbá-lo, Gustavo. Rssss.
“Natureza humana”… assunto pelo qual tenho muito apreço. Afinal, é com o esse “nó”, que é o indivíduo, que se constrói a teia social, na qual se faz Política… e há que se ter “ética”. Portanto, toda a Filosofia Prática gira em torno dessa questão metafísica, que é a “natureza humana”. O pior é que, ela mesma é um conceito problemático. Lembra os existencialistas falando que “a existência precede a essência”?
Sobre o Agostinho… e a “natureza humana”, vou só colocar um “tempero” na sua receita. Mais do que propriamente iniciar a reflexão sobre a natureza humana – que já constava dos assuntos da outra ágora, desde os tempos de Sócrates – o bispo de Hipona dá partida no estudo de algo que “pipoca” bem mais à frente, com Descartes, o “indivíduo”. Não é à toa que se diz que o argumento original do “cogito” é de Agostinho, e não do René.
Se já não era fácil descobrir o que é o homem, pior ainda ficou encontrar o “sujeito” dentro desse “animal racional” ou deste “bípede implume” que somos.
Abração,
Ricardo