Recebemos como herança cultural uma sobrevalorização do livre arbítrio, que tem por resultado vincular nosso destino a nossas escolhas. “Somos condenados a ser livres” e “o homem é responsável por si próprio” são expressões de Sartre sobre esse suposto fardo da responsabilidade por nossas escolhas.
No entanto, o “liberal conservador” – sempre tenho gosto especial em juntar essas expressões – John Gray, em seu Cachorros de Palha, nos revela que o livre arbítrio talvez tenha essa importância em nossa sociedade devido à herança cristã. Pois a religião nos ensina que foi por escolher a árvore da sabedoria que o homem vive nesse “mundo de dores e sofrimentos”.
De certa maneira, os existencialistas ateus rejeitaram a religião, mas se apropriaram dos conceitos dela ao ressaltar a importância das nossas escolhas para a vida que vivemos no momento. “Somos escravos de nossas escolhas”.
John Gray nos lembra que não escolhemos onde nascemos, nossa língua materna, nossa personalidade ou o quanto inteligente somos. Tudo isso nos é dado, sem nenhum questionamento. Muitas das escolhas que fazemos se devem à nossa herança genética, a nosso ambiente cultural ou a outro motivo alheio à nossa racionalidade. E boa parte do que é nossa vida não tem interferência nossa.
Apesar disso, é de se reconhecer que cabe a nós alguma responsabilidade sobre as amizades que escolhemos, o emprego a que nos sujeitamos ou a vida que levamos. E é em momentos de crise que temos condições de aferir a qualidade de nossas escolhas, seja para refazê-las ou para refutá-las. Pois ainda que não sejamos inteiramente responsáveis por nossa vida ser como ela é, inegavelmente há significativo espaço para atuação do livro juízo.
Momentos de crise aproximam as pessoas. Surge espaço para atuação política, pois crise implica algum tipo de mudança e a criação de algo novo. Não se cria algo novo, dentro de um espaço público, sem a combinação de interesses das pessoas, sem a atuação em conjunto, sem o fortalecimento de um espaço público, onde a atuação, afinal, ganha significado. Foi Platão que disse que é impossível agir sem amigos e companheiros confiáveis.
Esse tipo de atuação é tão importante, como já foi registrado diversas vezes da história, que aqueles que vivenciam uma crise com atuação conjunta, mesmo com sérios riscos à vida, sentem perda de significado na vida quando tudo termina, ainda que a atuação das pessoas em comum tenha produzido algo.
René Char atuou por quatro anos na Resistência Francesa, que buscava combater o Regime de Vichy, a França Nazista, durante a Segunda Guerra. Após a guerra, na formação da Terceira República, ele se sentiu vazio, como se a vida fosse aquela ação articulada, conjunta, fundada em sólidas amizades que buscavam a libertação do jugo Nazista. Nada parecia mais tão interessante quanto aquela vida que viveram. Ao se deparar com essa nova vida, ele se manifestou: nossa herança não nos deixou nenhum testamento. Para ele, o mundo após aquele momento apresentava uma opacidade triste, como se o seu cotidiano particular não importasse mais.
Eu ainda devo voltar a tratar do sentido da vida. Mas não é esse meu interesse no momento. Aos que vivem crises e momentos de grande turbulência, com o surgimento desses espaços públicos que propiciam o nascimento de alianças em busca da construção de algo novo, o único conselho que posso dar é para que aproveitem o momento. Por mais difícil que seja, o momento é propício para o estreitamento de laços, para a revelação de pessoas sem qualidades (que devem ser afastadas), para reencontro de cada um com seus valores e para desenvolvimento de um sentimento de pertencimento ao mundo que talvez seja inédito na vida de cada um. É nesses momentos em que é possível eleger as afinidades que lhe são valiosas, pois as amizades surgidas nesses momentos podem ser eternas.
Nesse sentido, talvez seja o caso de dar ao livre arbítrio o valor que ele merece. Se é fato que não podemos escolher tudo sobre nós mesmos, há algumas escolhas que podem fazer diferença para o resto de nossas vidas, independentemente do resultado que tenham. O mundo nos concede poucas oportunidades de desvelamento, de conhecimento de algumas verdades muito bem escondidas. Se feita a escolha certa, o mundo pode se abrir a nosso conhecimento de forma inédita durante graves crises. E as alianças formadas nessas condições são inquebrantáveis.
Gustavo Theodoro
Caro Gustavo, já estava sentindo falta de seus posts. Então, é com grande satisfação que o leio neste momento.
Vamos ao comentário, agora. Como spinozano, que sou, infelizmente não consigo “dar ao livre arbítrio o valor que ele merece”, isto porque não creio neste conceito. Acho que nossas escolhas nunca são livres, mas sempre determinadas. A questão é que não apenas necessariamente por coisas externas – como lugar de nascimento, língua, cultura, etc. -, mas fundamentalmente por nossos estados “internos”, digamos assim. Escolhemos com base em quem somos em determinado momento. E mesmo as amizades fazem parte desse processo. Tive um professor de Teorias e Sistemas Psicológicos que explicava que “amigo” quer dizer (metaforicamente, e não etimologicamente, entenda-me!) “amo+ego” ou “amo+igual”, ou seja, eu “escolho” aquele que se identifica com quem eu sou. Não sei se é exatamente assim, mas talvez passe por quem eu sou, mas também por quem eu gostaria de ser. Portanto, nesse sentido, pode não ser um “igual a mim” exatamente agora, mas um “igual a mim” idealizado… ao lado do “igual a mim” concreto.
Perceba que essa “consciência” toda envolvida nas nossas escolhas não é negada apenas por Spinoza. Antes dele, já Hobbes, no próprio Leviathan, trata disso. E, bem depois, o seu amigo bigodudo, Nietzsche vai tocar no assunto.
De qualquer forma, nada melhor do que um bom amigo por perto, quando os mares estão agitados, seja ele fruto de que tipo de escolha for.
Grande abraço, deste seu amigo Ricardo.
Obrigado pela sua contribuição ao debate, Ricardo. Eu já fui forte defensor do livre arbítrio, em meus tempos de existencialista sartriano. Mas houve um tempo em que abri revisão geral em meus conceitos, afastei-me da esquerda e fui buscar o pensamento dos liberais e até dos conservadores. Com isso, li interessantes críticas ao progresso e a nossos conceitos culturais, como o livre arbítrio, por exemplo. Com relação a esse assunto, diria que optei pelo meio termo, o que não é comum em mim. Sobre amizades, discordo. Somos atraídos também, e muito, pelas diferenças. Freud mesmo, de quem não sou apreciador, levantou a hipótese de odiarmos mais os defeitos nos outros que identificamos em nós mesmos. Isso, por simetria, pode comprovar sua tese, mas tendo a estar entre pessoas bastante diferentes de mim.
É possível imaginar Sócrates, após inúmeros questionamentos, conduzindo os defensores do livre-arbítrio e do determinismo ao estado de aporia. O livre-arbítrio de um, a liberdade máxima deste indivíduo, levaria ao determinismo do outro.O defensor do determinismo, por sua vez, estaria pré-determinado à sua condição, não podendo defendê-la dos questionamentos de Sócrates pela total falta de instrumentos argumentativos e criativos, refém do seu próprio determinismo. Então os conceitos abstratos evaporariam na realidade concreta. Só sei que nada sei!
Grande abraço Gustavo!!