Orwell

Coragem e Liberdade

No início do século XX as revoluções tinham como principal promessa devolver a liberdade às pessoas, mais do que dividir a riqueza. Invariavelmente, no entanto, as liberdades conquistadas pelas revoluções rapidamente refluíram à medida que o novo Governo se consolidava.

É prática comum dos regimes autoritários calar a imprensa, os escritores, além de silenciar os filósofos e os intelectuais. À esquerda e à direita, a história se repete insistentemente. Se hoje temos Victor Orbán, na Hungria, que controlou a imprensa, combateu a universidade e gradualmente tem reduzido o campo de atuação da política, há dez anos tínhamos Hugo Chavez, há quarenta tínhamos nossa ditadura militar.

Os que questionam a liberdade costumam ter problemas antes e depois da revoluções. Pessoas de personalidade mais flexível, ao contrário, normalmente aderem a qualquer Governo, mesmo que tenham apoiado o anterior até o último momento. Lembrei-me desses truísmos ao ter contato com Levgueni Zamiatin, autor de “Nós”.

Esse romance, escrito entre 1920 e 1921, é a distopia em que Aldous Huxley se inspirou para escrever “Admirável Mundo Novo”. George Orwell tentou por anos ter acesso a ele na Inglaterra e só conseguiu um exemplar, em francês, em 1946. Certamente o livro serviu também a ele de inspiração para seu clássico “1984”.

Orwell é crítico da falta de coesão do livro de Zamiatin, que teria uma trama “frouxa e episódica”. No entanto, Orwell percebeu que, no aspecto político, “Nós” é superior a “Admirável Mundo Novo”. No utopia do autor russo, os habitantes do futuro perderam tão completamente a individualidade que são conhecidos por números. A matemática, a higiene e a ordem são louvadas, enquanto as ciências humanas, a sujeira e a individualidade são combatidas.

O regime soviético, ainda em transição de Lênin para Stálin, não apreciou o livro, que teve sua publicação censurada. Só o conhecemos hoje pelo fato de ele ter tido uma cópia contrabandeada para a França, onde foi traduzido e publicado. É natural que esse fosse seu destino. Orwell seleciona um trecho que reproduzo abaixo, que torna evidente o desagrado que o tema poderia ter provocado naquele regime.

Você compreende que o que está sugerindo é revolução?

Certamente, é revolução. Por que não?

Porque não pode haver uma revolução. Nossa revolução foi a última e não pode haver outra. Todos sabem disso.

Meu querido, você é matemático; me diga: qual o último número?

Mas isso é absurdo. Números são infinitos. Não pode haver último.

Então por que você fala sobre a última revolução.

Nenhuma revolução será a última, nem há fim da história. Esse é um pensamento revolucionário. Na década de 1930 Zamiatin, que havia sido preso em 1905 pelo regime czarista por sua filiação ao movimento bolchevique, foi novamente preso por Stálin e condenado à morte. Sua peças se abrandaram, mas ainda assim ele não tinha autorização para serem encenadas. Todos os seus escritos gradualmente passaram a ser censurados.

Em 1932, condenado à morte, Zamiatin escreveu uma carta à Stálin. Seu pedido era até simples: exílio. Impressiona a coragem com que a carta foi escrita, além da indisfarçável ironia. Seleciono alguns trechos:

O autor da presente carta, condenado ao castigo mais elevado, apela ao senhor com um pedido de mudança de punição. Provavelmente, o senhor conhece o meu nome. Para mim, como escritor, ser privado de escrever é como uma sentença de morte. Ainda assim a situação que se delineou é tal que eu não posso continuar meu trabalho, pois nenhuma atividade criativa é possível em uma atmosfera de perseguição sistemática, que aumenta de intensidade a cada ano.

Não tenho a intenção de me apresentar como imagem da inocência ferida. Sei que, entre as obras que escrevi durante os primeiros três ou quatro anos após a Revolução, havia algumas que poderiam oferecer pretexto para ataques. Eu sei que tenho o hábito altamente inconveniente de dizer o que eu considero ser a verdade em vez de dizer o que pode ser conveniente no momento. Em particular, nunca disfarcei minha atitude em relação ao servilismo literário, à bajulação e mudanças camaleônicas…

Carta de Zimiatin a Stálin

O resto da carta segue nesse mesmo estilo. Confesso que não sei como ele saiu vivo de lá. Percebe-se que sua coragem ultrapassava em muito seu senso de preservação. Coragem sempre foi tida como a principal das virtudes políticas. Aristóteles ia além ao dizer que “a coragem é a primeira das virtudes, pois garante todas as outras”. Sem ela, de nada serve a criação de um ambiente de liberdade onde os cidadãos possam atuar politicamente. Em tempos em que a liberdade é tão discutida, o exemplo de Zamiatin não deve ser esquecido.

Gustavo Theodoro