Mais Saúde

Saúde pública é tema controverso em qualquer lugar no mundo. Michael Moore fez filme cômico politizando a falta de acesso de pobres americanos à saúde. Ao assistirem ao filme, os ingleses acharam graça de verem seu sistema de saúde retratado de forma elogiosa pelo polêmico cineasta.

O filme Invasões Bárbaras retrata a história de um velho esquerdista canadense que adoece e é entregue ao sistema de saúde pública de seu País. O sistema canadense é universal tal qual diversos outros países. Todos os sistemas públicos que pretendem oferecer saúde gratuita a todos têm dificuldade em disponibilizar tratamentos mais modernos e de maior custo. No filme, seu filho, endinheirado operador da bolsa de valores, o leva para os EUA, onde a saúde muito bem paga oferece o melhor serviço. O velho esquerdista não se sente confortável com a situação, já que ele mesmo sempre defendeu a saúde igual para todos.

Não é preciso citar mais exemplos para que compreendamos que o tema é polêmico. O racha americano dos últimos anos envolveu o sistema de saúde proposto pelo Obama, que nem mesmo é gratuito ou universal. Mas o obamacare foi suficiente para que os neocons passassem a chamar Obama de comunista.

Não é só no Brasil que a polarização dos debates cria empecilhos ao entendimento. A situação no Brasil, no entanto, consegue ser ainda pior. Influenciado pelo ideário social-democrata, que tenta combinar capitalismo com presença do Estado em áreas prioritárias (tais como saúde e educação), nossa Constituição adotou a tese universalista no sistema de saúde. Ou seja, todos têm direito à saúde gratuita.

Evidentemente não é desse modo que as coisas funcionam na prática. A saúde que é gratuita é, em geral, precária e insuficiente, de modo que quem pode pagar opta por um plano de saúde privado. Quem não tem recursos suficientes acaba mesmo no SUS. Sempre que falamos em sistemas universais, lembro-me de Burke, para quem a lei deveria ter cuidado para não fazer demais.

Apesar da imensa quantidade de recursos consumidos pelo SUS, o fato é que o sistema público ainda apresenta carências insuportáveis, com prazos impeditivos para exames diagnósticos, cirurgias eletivas e internações. O acesso ao médico também é uma dificuldade para todos os que dependem da saúde pública.

Infelizmente o debate sobre focalização ou universalização do gasto com saúde não foi importado pelo País. Em seu lugar, médicos de outras nacionalidades, mas principalmente cubanos, tomaram o seu lugar. O Governo e a sociedade civil poderiam começar a reconhecer que o sistema de saúde universal, ao invés de proteger os pobres, os penaliza, na medida em que não oferece bom sistema de saúde para ninguém. Quem pode, paga e tem acesso à saúde de boa qualidade. Quem não pode pagar, se submete à má qualidade do serviço público.

Com o programa Mais Médicos, a discussão foi mais uma vez postergada. O programa Mais Médicos busca preencher uma das necessidades reais do sistema público, que é o atendimento médico em locais mais afastados dos grandes centros.

É de se notar que este é apenas um dos graves problemas por que passa o sistema público de saúde. Com o programa Mais Médicos, não será discutida mais nenhuma questão importante para a melhoria do problema da saúde no país: a falta de leitos, a dificuldade de agendamento de exames de imagem, a utilização do SUS por segurados de planos de saúde, a medicina preventiva e formação de médicos. O programa Mais Médicos já mostrou sua capacidade de se sobrepor aos debates essenciais.

Não que não seja justificável o debate até então havido sobre o Mais Médicos, uma vez que o programa em si é bastante questionável em vários de seus aspectos e o debate foi instrumentalizado de forma a colocar a população (carente) contra uma classe privilegiada (médicos), utilizando aquele velha tática retórica ensinada por Marx de identificar pessoas em grupos – tal como proletariado e burguesia – para reviver o discurso da luta de classes.

A crítica ao Mais Médicos é, em boa parte, procedente, visto que os médicos estrangeiros são admitidos com visto de estudantes, recebem bolsa de estudo (para burlar nossa rígida lei trabalhista), mas trabalham longe de hospitais-escola. Além disso, é um risco dispensar a avaliação dos médicos importados. Não é suficiente dizer que a medicina do resto do mundo é muito boa e, consequentemente, estamos importando bons médicos. O silogismo é evidente, não precisa ser demonstrado, já que exames de qualificação são feitos em indivíduos, e não em grupos.

Mais grave ainda é a situação dos cubanos, sujeitos a uma remuneração muito inferior aos demais médicos. Além disso, as cláusulas do contrato recentemente reveladas (proibição de exercício de outras atividades, o casamento com não cubanos sujeita à autorização de Cuba, punição por abandono de emprego de acordo com as leis cubanas, etc..) ferem diversos dispositivos de nossa Constituição.

Fica a impressão ainda de que o programa Mais Médicos só foi criado para receber os médicos cubanos, já que a Venezuela os dispensou no ano passado por falta de dólares. Ao final da implantação do programa – que ocorrerá nos próximos meses – o Brasil terá recebido cerca de 10.000 (dez mil) médicos cubanos, quase metade do contingente exportado por Cuba. Não podemos nos esquecer da lição de Montesquieu, que dizia que a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos. Criar um grupo com menos direitos que outro torna-se um perigoso precedente.

É pena que não tenhamos o hábito de reconhecer os erros cometidos. O Governo, em substituição ao lançamento de um programa que trata de apenas um aspecto da saúde pública, poderia ter proposto um debate mais honesto, discutindo o financiamento e a abrangência do SUS. Poderia ser discutido o programa de formação de médicos e, nesse meio tempo, até seria admitida a criação de um programa nos moldes do Mais Médicos (que fixasse os médicos nas regiões de mais necessidade), mas sem seus vícios, como a falta de vínculo empregatício (férias, décimo-terceiro e demais direitos) e a diferenciação de salário dos cubanos.

Com todo o imbróglio criado, vemos opiniões amalucadas de que os cubanos estão enviando um exército de médicos para nos converter ao comunismo (!?), cujas tratativas teriam todas sido acertadas no Foro de São Paulo (!?). É neste caldo de cultura meio non sense que estamos imersos. E o importante debate sobre saúde pública não ocorre.

Vejam que em quase todas as colunas tenho criticado menos as causas em si e mais a polarização que oblitera o debate. Não deixo de reconhecer que, às vezes, dá vontade de seguir o caminho sugerido pelo racionalista Spinoza: É preferível concordar com aquilo que não pode ser abolido.

Gustavo Theodoro

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