Como se sabe, a questão racial nunca foi totalmente equacionada pela humanidade. O regime de castas vinculadas a etnias sempre esteve presente nas sociedades humanas. O extermínio daqueles identificados como de outra etnia foi seguidamente registrado na história da humanidade. O século XX trouxe uma nova dimensão para a questão com o advento das doutrinas pseudocientíficas que defendiam a purificação das raças. Verificou-se um extermínio tão gigantesco que foi necessário cunhar novo nome para descrever a atrocidade: genocídio.
Passada a experiência Nazista, gradualmente as demais distinções entre os indivíduos foram sendo extirpadas dos textos normativos de quase todos os países do mundo. A noção de igualdade entre todos os seres humanos foi ganhando dimensão mundial, sendo poucos os redutos onde há militância racial no mundo.
Ocorre que o fim das discriminações não produziu a igualdade pretendida, pois indivíduos que tiveram menos oportunidades transmitiram sua condição social para seus filhos. Os EUA, por exemplo, onde havia leis que discriminavam negros e judeus ainda na década de 1960, optaram por conceder benefícios aos pertencentes àqueles grupos sociais. Ali nasceram as cotas raciais.
A questão racial e, mais ainda, as cotas raciais têm o estranho poder tirar o prumo de uma discussão, levando os lados a radicalizarem. Aqui no Brasil, a situação se reproduziu tal como ocorrido no exterior. Os grupos mais alinhados à esquerda defendem as cotas raciais e aqueles mais alinhados à direita preferem a melhoria de todo o ensino e a igualdade de oportunidades. Posta a questão deste modo, não há como alinhar-se a nenhum dos grupos.
Para agravar o quadro, o jornalista Ali Kamel publicou um livro com o título Não Somos Racistas, livro este que acabou enfocando mais a existência ou não do racismo no Brasil e menos a correção da aplicação das cotas.
Ainda pretendo desenvolver com mais vagar o assunto cotas raciais. Meu objetivo hoje é tratar dos textos de dois importantes nomes do colunismo brasileiro: Jânio de Freitas e Luis Nassif.
Jânio de Freitas vem criticando sistematicamente a postura do Ministro Joaquim Barbosa, tanto pelo seu temperamento quanto por sua suposta parcialidade no julgamento da Ação Penal 470, o mensalão do PT.
Ontem, o citado colunista escreveu uma estranha coluna. Após passar mais de dois anos criticando diversos aspectos da personalidade e das atitudes de Joaquim Barbosa, ontem Jânio de Freitas disse que o Ministro Joaquim Barbosa poderia estar deixando o STF para dedicar-se a um projeto de igualdade racial. Na opinião do colunista, um projeto assim daria sentido, por sua utilidade, ao prestígio que lhe foi conferido pelo julgamento do mensalão.
Depois de saudar o fato de o Ministro ter desistido de sua aventada candidatura à Presidência da República, passou Jânio de Freitas a elogiar sua iniciativa. Mas o colunista não parou por aí. Mais à frente em sua coluna ele sugere que o movimento negro poderia ser e ter seu próprio partido. Não chega a avançar, mas está clara a possibilidade de o Ministro Joaquim Barbosa liderar este partido.
Há diversos pontos que chamam a atenção na coluna. Primeiro, a ideia de segregar pessoas pelo critério de cor, ou racial, sempre resultou em mais racismo, nunca em menos. Portanto, um partido de negros pode ajudar a germinar um racismo muito mais grave do que aquele que temos presenciado.
Além disso, talvez até fizesse sentido um partido negro em um País com segregação racial legalmente instituída. Em um País em que é livre a filiação a partidos e em que os partidos têm um importante papel na representação da população junto ao Governo, a união em um partido deve se dar em torno de ideias e afinidades, e não em razão de critérios inatos.
Por último, é de se destacar a falta de coerência do colunista, que após atacar sistematicamente o Ministro quando estava em julgamento a AP 470, passou a fazer um discurso quase simpático ao Ministro quando ele se mostrou simpático à causa negra. Ora, se o ministro é truculento e parcial, não deve ter perfil adequado para a atividade política.
O comportamento de Jânio de Freitas é típico dos colunistas de esquerda: exige que os negros, por serem negros, atuem no campo a eles designado. Assim, o negro só tem comportamento adequado se atua na condição de negro, vê as questões da perspectiva do negro. Subitamente, ao sugerir que iria seguir este caminho, o Ministro Joaquim Barbosa passou de vítima de constantes ataques à esperança na formação de um partido do movimento negro.
Ora, exigir que um negro se comporte de tal ou qual maneira por ele ser negro não passa de nosso velho conhecido preconceito racial.
O caso de Luis Nassif é um pouco mais grave. Como os demais colunistas ligados ao Partido dos Trabalhadores, Luis Nassif vem criticando sistematicamente o Ministro Joaquim Barbosa por sua atuação no julgamento do mensalão.
Luis Nassif é, também, defensor da política de cotas raciais instituída pelo Governo Federal. Publica com alguma frequência em seu blog textos com defesa das cotas raciais. Muito bem.
A crítica que é geralmente feita pelos que combatem as cotas raciais é que elas acabam alimentando o preconceito, na medida em que aquele que entra pela cota poderia ensejar nos demais aprovados em processos seletivos a ideia de que os cotistas são menos preparados, menos capazes e, apesar disso tudo, privilegiados. Ou seja, a crítica é que a cota daria um valor negativo ao cotista, diminuindo-o aos olhos da sociedade.
Dizem os colunistas de esquerda que isto não passa de falácia de preconceituosos, de pessoas que não querem uma sociedade plural e multicolorida. Pois bem. Na semana que passou, em uma coluna nominada Barroso, o senhor Juiz, e sua declaração e amor ao direito, o colunista incorre no mesmo tipo de desqualificação descrita acima.
Na referida coluna, Luis Nassif disse que só o Ministro Barroso entrou no STF por seus próprios méritos. Reproduzo o trecho em que ele passa a desqualificar os demais ministros, para não perder nenhuma palavra, apesar de meu interesse estar em um trecho específico:
Em que pese seu inegável preparo, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence assumiram por favores explícitos prestados ao governo Sarney e ao polêmico Ministro da Justiça Saulo Ramos. Marco Aurélio de Mello deve o cargo ao primo Fernando Collor. Gilmar Mendes foi nomeado por FHC para blindá-lo de qualquer aventura jurídica futura do STF; Lula nomeou Dias Toffoli com a mesma intenção. Joaquim Barbosa entrou na cota racial; Ayres Brito fingindo-se petista; Luiz Fux, à dupla malandragem, de prometer “quebrar o galho” antes e não cumprir com a palavra depois. (g.n.)
Vejam que, para desqualificar o Ministro Joaquim Barbosa, Luis Nassif utilizou um suposto benefício da cota racial para reduzir seus méritos. O colunista praticou discriminação racial tal como os que combatem a cota previram que ocorreria.
Há de se cobrar coerência daqueles que se dispõem a atuar na seara política, ainda que tenham suas simpatias. A questão racial já produziu muitos mortos nos últimos séculos para que sejamos irresponsáveis na discussão do assunto. A bravata e a mentira está contida na política. Mas é bom que aqueles que se dispõem a debater ideias em público mantenham suas paixões à margem no trato de tão difícil questão.
Gustavo Theodoro