As limitações no abastecimento de água da região metropolitana de São Paulo são demasiadamente conhecidas para serem tratadas como um imprevisto. Mudei-me para a cidade lá pelos idos de 1999 e já se ouviam notícias, às vésperas do verão, com preocupações sobre o nível crítico dos reservatórios.
Água é indispensável e a segurança de seu abastecimento deve ser tratada como item prioritário de qualquer Governo. E a recente crise de abastecimento da região metropolitana de São Paulo permite ao observador isento perceber vários dos traços que identificam nossa cultura e são, em grande parte, responsáveis pelo nosso atraso.
É bem conhecida a tese de que o jeitinho brasileiro tem a ver com uma espécie de inteligência nossa, uma esperteza que dê conta da nossa realidade. Antes de ser traço de evolução, revela sim características negativas que acabam levando o brasileiro a agir de foram improvisada, com baixa adesão às regras, relegando a segundo plano o respeito aos próximo.
Como o problema é antigo, houve tempo para solucioná-lo ou, pelo menos, para que fosse elaborado um plano de ação em caso de regime de chuvas insuficiente. Como o problema já era conhecido há décadas e considerando que os especialistas em clima vêm constantemente alertando para as possibilidades de eventos extremos, como enchentes e secas, o regime de chuvas era por demais conhecido.
Como o mesmo partido Governa o Estado há cerca de 20 anos, torna-se difícil adotar discurso comum a diversos políticos de atribuir o insucesso de seu Governo a algum antecessor da oposição. Como a crise de abastecimento não é recente, torna-se também impraticável a adoção do discurso de que o problema era inesperado ou de baixa probabilidade de ocorrer.
O traço característico dos Governos de países sul-americanos é a falta de planejamento de longo prazo, a falta do planejamento estratégico. Tivesse sido realizado um planejamento deste tipo no início dos anos 2000, com diagnóstico dos pontos críticos que poderiam levar ao desabastecimento futuro e proposição de planos de ação plurianuais, não chegaríamos à situação que agora se avizinha.
Não podemos nos esquecer de que o Governador Geraldo Alckmin, como é comum em outros governos do PSDB, fez sua campanha centrada na imagem de bom administrador, como se passasse ao largo da política, reduzindo de certa forma a atividade de governar àquilo que Marx chamava de mera administração das coisas. Neste mundo supostamente sem políticos, bastaria votar no bom administrador.
Pois o que se viu é que nem mesmo bom administrador ele se mostrou. E pior: as soluções emergenciais, criadas de afogadilho, exigem a presença do político, do agente capaz de propor, negociar e conciliar. E neste momento o político realmente não compareceu.
Uma das soluções de maior repercussão anunciadas pelo Governo foi a transposição do Rio Paraíba do Sul. É evidente que esta medida poderia ser levada adiante. Antes disso seria necessário apurar o impacto ambiental e verificar segurança no abastecimento das famílias que dependem daquele rio, boa parte delas situadas nos Estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
Mas a crise é tamanha que anunciaram a medida antes de tomada qualquer atitude política. Nenhum estudo foi elaborado em conjunto com técnicos de outros estados. A Agência responsável por nossos rios não havia sido comunicada dos planos de desvio do Rio Paraíba. Nenhum preparo político foi feito para a medida. Além de se tratar de solução pouco estudada, tomada no momento em que é consumida a reserva estratégica das represas que abastecem São Paulo, ela não teve nenhum acordo prévio, gerando franca reação dos Municípios e Estados atingidos.
Política tem muito de estética. E a imagem de bom gerente e de bom administrador nos dias atuais – em que a política anda com tão baixo status – costuma apresentar bons resultados eleitorais. Ocorre que a administração do Estado não se faz só com isso. E o caso presente foi agravado pelo fato de o Governador não ter se mostrado nem mesmo bom administrador, visto ter se colocado como administrador de crise em uma situação evitável.
Sim, era sim evitável. Se a obtenção de água de outros rios para o reservatório era viável, ela poderia ter sido executada em períodos de cheia, de fartura. Um desvio como este, com planejamento de técnicos e com reduzido impacto no volume dos rios, não teria a resistência que agora é observada.
A reeducação da população e o estabelecimento de compromissos comuns de economia de água são agora substituídos por um programa de bônus que já se mostrou fracassado. Se ¼ da população aumentou seu consumo após a primeira rodada bônus, não se justifica a ampliação do programa para outras áreas. Seria hora de mudar a estratégia. É certo que nossos Governos estão fascinados pelas ideias de metas e remunerações variáveis que não deram certo na Inglaterra na década de 1990. O PSDB parece particularmente fascinado por essas ideias. Mas é hora de estudar um pouco a experiência original para compreender o porquê de os programas de bônus simplesmente não funcionarem.
Como racionamento tem sido medida considerada antipopular, está em vigor um racionamento disfarçado, não muito anunciado, em regiões mais pobres das cidades que circundam São Paulo. Trata-se de tática rasteira, elitista, baseada na premissa de que os pobres reivindicam menos os seus direitos, sendo mais resignados, conformados com sua situação de carência. É evidente que bairros pobres têm menos visibilidade, mas o racionamento não passou despercebido da imprensa, causando o estrago político que se pretendia evitar.
Por último, é de se ressaltar a tibieza de nossos políticos. Há momentos em que é preciso reconhecer erros, estabelecer gabinetes de crise e enfrentar a população, explicando os erros cometidos e pedindo apoio no combate ao desperdício, no incentivo ao reaproveitamento de água, na solução conjunta do problema surgido. Isso costuma ser obra de estadistas, e não de meros políticos. Além disso, quem constrói seu governo sobre a falsa imagem de bom gestor está umbilicalmente atado a esta imagem, equivalendo a destruição desta imagem à destruição do próprio Governo.
As lições que tiramos desta crise, que daria um boa tese de sociologia e de política, são várias: Governos ainda demandam o exercício da política; estadistas tomam a decisão com foco no bem estar da população, meros políticos tomam decisões com foco em sua imagem; a falta de planejamento leva os administradores a trabalhar mais, porém os impede de atingir os resultados desejados; quando o sacrifício é necessário, os mais ricos são preservados; a política nunca será reduzida à mera administração das coisas.
Gustavo Theodoro