Há uma dúvida nunca solucionada pela filosofia relacionada a saber quão verdadeiras são nossas percepções, quão verdadeiro é o chamado mundo das aparências. Logicamente é um problema insolúvel se a metafísica é afastada da discussão.
A escola platônica é, possivelmente, a primeira a fazer especulações sobre o assunto. Numa bem conhecida inversão de Homero – que retratou o corpo físico à sombra das almas no Hades -, para platão era a alma que estava à mercê do corpo. Em Homero, a alma era prisioneira do corpo. Em Platão, a verdade era apreensível apenas pela contemplação, mas o corpo físico frequentava o mundo das aparências. A alma em Platão tinha que se utilizar dos sentidos do corpo para apreender a verdade, que era acessível a poucos.
A metafísica se impôs entre os escolásticos, fazendo com que a filosofia fosse colocada a serviço da teologia. Até aqui a vida contemplativa tinha ampla preponderância sobre a vida ativa, preponderância que a vida contemplativa só veio a perder por via indireta, a partir de um evento inesperado.
No século XVII, o homem seguia se ocupando de inutilidade (pelo menos aqueles livres das necessidades da vida). O pragmatismo estava sempre presente na esfera pública, mas a influência da filosofia e da religiosidade era sentida na medida em que a atividade política não era dissociada de valores superiores. No entanto, a inutilidade do pensamento era marca dos filósofos e cientistas da época.
Foi na busca por entender o mundo, uma busca sem qualquer sentido prático, que o relógio, por exemplo, foi inventado, passando a interferir decididamente na vida prática. Foi a tentativa de ir além do mundo das aparências (com as invenções do microscópio e do telescópio) que fez com que perdêssemos nossa confiança em nossos sentidos.
Descartes utilizou Deus para retomar a confiança em nossos sentidos (pois sendo Ele perfeito não nos daria percepções imperfeitas do mundo; não se pode esquecer que o livre arbítrio, fonte da maioria de nossos erros, foi escolha humana, segundo a doutrina cristã). É com base na certeza de que aquilo que apreendemos é o mundo real que as dúvidas foram erigidas. Sem querer, ou melhor, tentando dar uma explicação final ao mundo, Descartes na verdade criou a escola da dúvida, tão responsável pelo avanço das ciências.
A Física Quântica só fez agravar a dissociação entre nossos sentidos e o mundo real. Ao mesmo tempo, a se confiar que o mundo é de fato como nós o percebemos (considerando agora os instrumentos de medida como parte ampliada de nossos sentidos), adquirimos constantemente mais conhecimento de como as coisas são de fato mesmo se não existíssemos, ou seja, ampliamos nosso conhecimento sobre a coisa-em-si.
A filosofia a partir do século XVII se debruçou detidamente sobre essas questões, do mundo como fenômeno, no dizer de Kant, do mundo como representação, de Shopenhauer. Infelizmente, é necessário dizer, só a dúvida lançada por Descartes persiste.
A vida prática venceu. O pensamento inútil está cercado de desprestígio, tendo constantemente contra si a atilada pergunta: mas se todos os filósofos são combatidos e invertidos por seus sucessores, para que serve tanto pensamento? Esta pergunta lembra-me um pouco a pergunta que Schopenhauer se colocava e que foi, de certa forma, precursora de Deus está morto de Nietzsche:
Como se pode viver sem um horizonte de sentido previamente recebido e sem qualquer garantia de que qualquer sentido exista?
Muitas vezes, é esta a pergunta que a filosofia tenta resolver. Pois eu sou menos ambicioso quanto a meus objetivos. Sigo aquela perspectiva muito comum em psicologia positiva que sugere aproveitar mais o caminho do que o fim em si. Neste sentido, mais importante do que encontrar um objetivo para tamanha perda de tempo é se lembrar da velha e muito conhecida afirmação de que a filosofia é a poesia do pensamento (Gedankendichtung), cuja beleza justifica sua existência independentemente do fim a que se alcance.
Gustavo Theodoro