Porque os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias, que vão ao exterior procurar o caminho para as coisas desejadas.
Hobbes
Na primeira coluna sobre o assunto foram introduzidas algumas definições que serão necessárias na análise futura dos resultados atingidos por Minas Gerais em seu choque de gestão. Neste artigo, será necessário percorrer um pouco mais o caminho da teoria, pois sem ela não seremos capazes de compreender os números produzidos pelo choque de gestão mineiro.
Donald Kettl em 1997 propôs uma classificação dos modelos de administração existentes no mundo. O primeiro, mais afinado com o nórdico, pode ser sintetizado pela expressão: let managers manage, ou seja, deixe o gerente gerenciar. O segundo modelo, mais próximo do modelo inglês, pode ser sintetizado por outra expressão: make managers manage. Ou seja, faça o gerente gerenciar.
No primeiro caso, a média gerência busca ela mesma a solução para os problemas, conversa com a equipe em busca dos melhores resultados. No segundo caso, como a cobrança será centralizada, com o tempo a gerência e a própria equipe começam a seguir ritmo de cobrança da organização. Ou seja, a cobrança centralizada esvazia as médias gerências, tornando-as inócuas, retirando sua motivação intrínseca, o que causa prejuízos ao desenvolvimento do trabalho, principalmente no longo prazo.
Raramente os indicadores podem ser considerados negativos por si sós. Pelo contrário, medir os resultados e ter metas é uma prática muitas vezes recomendável. A percepção dos indicadores também não é má entre os funcionários em geral. Entrevistas feitas em organizações que implantaram indicadores revelam frases do tipo: eles são bons; antes não sabíamos da nossa situação, agora sabemos; agora identificamos os problemas. Isto revela que, na verdade, os indicadores não são a causa dos males que eles acarretam.
No entanto, como escrevi no primeiro artigo da série, é preciso separar a atividade de construir os indicadores e medir aspectos da organização da atividade controlar e cobrar com base nos indicadores.
No sistema nórdico, indicadores são acompanhados pela organização com o objetivo de aprendizado, voltado ao autoconhecimento, em busca de identificar os pontos falhos e buscar caminhos que aumentem a eficiência e a satisfação dos servidores. No sistema inglês, indicadores são criados e utilizados para cobrança. Esta pequena distinção no uso dos indicadores pode fazer toda a diferença no ambiente e nos resultados obtidos pela organização.
Quando se utiliza os indicadores com a finalidade de cobrança ou mesmo de premiação (como vimos no primeiro artigo, tanto a ameaça de punição quando a possibilidade de premiação se relacionam à motivação extrínseca), pode emergir o fenômeno do gaming. A palavra se refere à situação em que os controlados aprendem a regra do jogo e passam a jogar segundo seus interesses, mesmo que contrários aos objetivos da organização.
Como se sabe, com a informatização é possível medir tudo (ou quase tudo). Na década de 1990, as Administrações Públicas começaram a estabelecer indicadores (que buscavam ter relação com o objetivo da organização) e, partir deste ponto, iniciou-se a busca por metas. Junto com isso veio a remuneração variável relacionada ao atingimento da meta. Voltaremos a este ponto em outro artigo da série.
Em 2007, C. Hood definiu o gaming como a deliberada distorção ou fabricação de números coletados com a intenção de melhorar a posição de um indivíduo ou organização. É forte a definição, mas hoje já se sabe que o gaming sempre acompanha a implantação de indicadores e a cobrança de metas. Passo a listar os três tipos mais comuns.
O primeiro é conhecido como rechet effect, ou efeito bola de neve. Ele ocorre quando os funcionários percebem que as próximas metas serão influenciadas pelo desempenho obtido no presente. Com isto, tem início a administração do serviço. Os funcionários começam deliberadamente a trabalhar menos, pois sabem que, se muito for feito, mais ainda será exigido no futuro.
O segundo tipo é o nivelamento por baixo – threshold effect. Quando metas iguais são impostas a todos, não há incentivos para a excelência, fazendo com que os que produzem mais se sintam desencorajados a assim procederem, o que acaba reduzindo a produtividade global.
O terceiro tipo é a distorção de objetivos – hitting the target and missing the point -, ou seja, atingir o alvo mas não o objetivo. São os casos em que mais trabalho é feito com menos qualidade ou mais pessoas são atendidas sem resolver o problema, entre outros.
Esses efeitos colaterais, em muitos casos, fazem com que a produtividade após a implantação dos indicadores seja inferior à havida antes de sua implantação. Muito interessante tudo isso, não é mesmo? Detalhe: isto acontece sempre, em qualquer organização, de qualquer país, que se aventure a estabelecer metas rígidas em um ambiente de forte cobrança.
Vai abaixo um glossário com as mais diversas técnicas de gaming, tal como proposto por P. Smith:
Visão tunelada – Diante de diversas possíveis metas, gestores escolhem aquelas mais fáceis de serem mensuradas e ignoram as restantes.
Sub-desempenho – Ocorre quando gestores trabalham de forma a atingir suas metas específicas mesmo que isso gere consequências negativas para o sistema como um todo.
Miopia – Ocorre quando gestores focam seus esforços em metas de curto prazo em detrimento de objetivos de longo prazo.
Fixação na medida – Quando impactos são difíceis de medir, existe a tendência natural de utilizar indicadores baseados em produtos/serviços. A fixação na medida ocorre quando esse indicador torna-se o foco em detrimento do impacto desejado.
Distorção oportunista – É uma forma de fraude que ocorre quando a informação sobre desempenho é reportada de forma oportunistamente negligente ou ainda distorcida para causar boa impressão.
Interpretação distorcida – Ocorre em função da imprecisão de medidas estatísticas, em situações onde listas com ranqueamento de desempenho tenham resultados muito próximos, fazendo com que desempenhos semelhantes sejam reportados – e interpretados – como distintos.
Efeito bola de neve – Ocorre quando gestores oportunistas buscam resultados ruins no período corrente para não serem desafiados com metas ousadas no próximo período.
Cristalização da medida – Ocorre quando um indicador de desempenho anteriormente utilizado perde seu propósito, mas ninguém tem a iniciativa ou interesse de retirá-lo.
Como se pode notar, a implantação de indicadores é mais arriscada do que pode parecer inicialmente. Os indicadores e metas foram implantados nos países de língua inglesa na década de 1990, mas hoje são motivo de piada por lá. Duas séries televisivas dos anos 2000 tratam das metas com escárnio, ou deboche mesmo, denunciando as práticas de gaming que passaram a predominar nas organizações. Uma delas é a inigualável The Wire, provavelmente uma das melhores séries da história, que revela o traço cruel dos indicadores aplicados nas áreas de educação e segurança. O mesmo fenômeno é descrito em uma série inglesa de nome Line of Duty, que revela as táticas utilizadas pela polícia para driblar as estatísticas – aumentando a taxa de resolução de crimes por meio de acordos em que culpados por outros crimes confessam crimes de terceiros -, sem atentar para os verdadeiros objetivos da organização.
Tanto os EUA como a Inglaterra aderiram com disposição a esses sistemas de metas, indicadores, remuneração variável, rankings, bônus e cia. Por isso, a TV de lá, quando o sistema caiu em descrédito há cerca de 15 anos, começou a escarnecer desse sistema. Aqui ainda estamos em uma fase embrionária, ainda tendemos a considerar moderno quem fala em indicadores, metas e choque de gestão. Tanto é assim que Aécio Neves pretende utilizar esta bandeira em sua campanha.
Na coluna da próxima quarta-feira teremos um pouco mais de teoria e, a seguir, passaremos a analisar os números do choque de gestão mineiro extraídos da Tese de Mestrado de Luís Otávio Milagres de Assis apresentada à Escola de Administração da FGV São Paulo, de onde foi obtida parte da teoria acima exposta.
Gustavo Theodoro