Choque de Gestão

Aécio e o Choque de Gestão – Final

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Hoje a ênfase será menos nos erros cometidos pelo Governo do Minas e mais em um conceito essencial para a área de Administração: a motivação intrínseca.

Como vimos, nas organizações privadas, a motivação financeira não é tão eficaz quanto parece, principalmente quando se está analisado a atuação de profissional do conhecimento. Vimos também que o servidor público é ainda mais impermeável ao oferecimento de vantagens financeiras, principalmente se a comparação se dá com seu foco nos objetivos da organização pública a que pertence.

Para avançar no assunto, vamos retomar a classificação que havia sido feita sobre os indicadores no primeiro capítulo desta série: os indicadores de produto medem a atividade realizada (como o número de inquéritos encerrados no caso da Polícia Civil mineira) e os indicadores de resultado dão informações sobre o impacto do trabalho realizado no seu campo de atuação (demos exemplo a quantidade de determinados crimes, cuja redução era meta da Polícia Militar).

Lembremos que, no Estado de Minas, o choque de gestão vinculou parte considerável do salário ao atingimento das metas. Pela pesquisa realizada, foi possível observar que a organização passou a praticar o conhecido gaming, ou seja, passou a jogar conforme as regras do jogo. A Polícia Civil passou a produzir inquéritos mais finos, reduzindo sua qualidade, com o objetivo de atingir o número combinado. A Polícia Militar mudou o enquadramento de alguns crimes (de roubo para extorsão, por exemplo), pois buscou-se reduzir a incidência dos crimes sujeitos às metas.

O mesmo comportamento não foi verificado nos Bombeiros. Este é um caso dos mais interessantes do choque de gestão mineiro – para o campo acadêmico – e pode nos dar algumas pistas valiosas sobre o caminho que qualquer organização pública deve seguir.

O estabelecimento de indicadores no caso dos Bombeiros teve um efeito positivo. Nenhum valor era medido antes, assim a própria discussão dos indicadores dentro da corporação produziu maior conhecimento de si própria. Foram levantados então dois indicadores, mas vou trazer os resultados de apenas um, por ele ser um indicador de resultado que tem relação direta com a atividade dos bombeiros.

O indicador construído pelos bombeiros aferia o tempo médio de atendimento de emergências. A primeira medida deste tempo apresentou 12 minutos como resultado preliminar. O próprio levantamento deste número fez a corporação tentar melhorá-lo. Quanto menor o tempo, maior a possibilidade de ter uma vida salva. A motivação intrínseca neste caso é muito alta, conforme se pôde ver das declarações dos Bombeiros.

Com esta motivação, foi elaborado um estudo sobre as localizações das unidades. A alocação de carros próximos a locais de maior incidência de acidentes foi providenciada. Rotas de saída foram facilitadas. Motos foram compradas para atendimento em zonas de muito trânsito. Ou seja, o indicador, que media algo que todos consideravam importante, teve efeitos positivos no trabalho da organização, que passou a se mover em torno dessa medida. O tempo médio reduziu-se de 12 minutos em 2008 para 8 minutos e 2011. Era certo que nova redução só seria possível com o aumento do contingente e do número de unidades. Logo, a meta foi atingida sem necessidade de se aumentar os recursos disponíveis e nenhuma outra redução da meta foi proposta desde então, pois estava claro que um limite havia sido atingido.

No entanto, se este lado foi positivo, há outro que não foi tão positivo assim. Como se sabe, o choque de gestão mineiro criou a Participação nos Resultados. Assim, as metas tinham que ser atingidas para recebimento dos valores adicionais. Este aspecto foi muito criticado pela organização e é fácil explicar o porquê.

A motivação para o trabalho era evidente. Uma emergência atendida rapidamente significava, eventualmente, uma vida salva. Segundo entrevista concedida pelos próprios bombeiros, isto não podia ser quantificado em dinheiro. Ainda segundo um Bombeiro ouvido, não fazia sentido receber bonificação por realizar uma atividade que já era minha atividade. Além disso, a bonificação criava um ruído desnecessário: será pago? Quando será pago? Qual será a nova meta? Esta monetização das tarefas – e ninguém aqui está dizendo que dinheiro não é importante – retira da atividade seu valor intrínseco.

Este relato nos permite fazer algumas inferências:

a) a construção de bons indicadores pode ajudar qualquer organização a se conhecer melhor;

b) bons indicadores – mesmo sem qualquer meta a eles vinculada – podem valorizar o sentimento de utilidade que o funcionário tem de seu trabalho, atuando em sua motivação intrínseca;

c) vinculação de prêmios de produtividade a resultados obtidos monetizam a relação de trabalho de modo a obscurecer a importância do trabalho executado;

d) vinculação de prêmios em dinheiro, mesmo quando os indicadores são bons, criam na instituição um ruído desnecessário, que pode mitigar a motivação intrínseca dos servidores.

É valiosa a lição que se pode tirar disso. O velho pensamento – que por aqui é tomado por novo – de que basta dar uma cenoura que o burro se movimenta pode até funcionar bem para os burros, mas seres humanos costumam ser mais complexos. Temos fome de valor, sede de significado, todos gostam de entender o que fazem e por que fazem determinado serviço. Foi vencida a época em que a mera autoridade do chefe servia de estímulo suficiente para a execução do trabalho. E está superado o conceito de que os bônus podem tomar o lugar desta perda de autoridade imposta pelas novas gerações. O mundo está mais complexo, mas a ciência nos fornece, a cada dia, mais subsídios para que as organizações melhorem seu funcionamento e, ao mesmo tempo, mantenham um bom clima organizacional, propiciando locais de trabalhos mais humanizados, em que velhos valores como respeito, disciplina e compromisso coexistam com o bem estar, a boa saúde, mas também com a criatividade e a inovação.

Voltarei a analisar o choque de gestão mineiro antes das eleições, mas desta vez com ênfase no discurso do candidato Aécio Neves em cotejo com os resultados efetivos de seu Governo. O que vimos aqui foi a importação de algo muito difundido na Inglaterra e nos EUA nos anos 1990, mas que a academia refutou como técnica de gestão eficiente. Veremos se em outras áreas o chamado Choque de Gestão efetivamente produziu resultados eficazes.

Gustavo Theodoro

Aécio e o Choque de Gestão V

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Segundo a publicidade do governo mineiro, o choque de gestão aplicado em diversas áreas de administração pública trouxe um sopro de modernidade à máquina estatal. Segundo esta fábula, servidores ineficientes e desmotivados passaram a perseguir os prêmios oferecidos, transformando o serviço público em uma ilha de eficiência. Infelizmente, os resultados entregues não foram capazes de demonstrar a premissa.

Não nos espantamos com isso, visto que as evidências costumam refutar a teoria do homem unidimensional, do homo economicus, que é sensível apenas ao estímulo financeiro oferecido. Por sorte nossa – uma vez confirmado que não somos autômatos -, todas essas teorias foram superadas. Somos muito mais que isso. No entanto, no Brasil esses sistemas que fracassaram nos países centrais ainda são vistos como símbolo de ideias arejadas e modernas.

Na semana passada vimos que, na Polícia Civil, o principal indicador construído para medir o desempenho das Delegacias de Polícia criou toda sorte de distorções, estimulando o gaming e o trabalho de baixa qualidade ao mesmo tempo em que desmotivou os mais produtivos. Hoje vamos analisar a introdução dos indicadores, das metas e da remuneração variável na Polícia Militar.

Ao contrário da Polícia Civil, que negociou a implantação de indicadores que visam ao produto (no caso o número de inquéritos concluídos), no caso da Polícia Militar, optou-se por medir os resultados (no caso, número de roubos e número de tentativa de homicídios, entre outros). Nesses casos, o próprio significado do indicador já indica a direção que se deve seguir, ou seja, a meta da Polícia Militar passou a ser a redução de alguns crimes específicos, como roubos, tentavas de homicídios e assassinatos (que se tornou índice mundial de aferição da violência nos países).

O acompanhamento teve início em abril de 2008. No final de 2011, os números eram inquestionáveis. Havia sido reduzido o número de roubos em cerca de 10% e foi de 20 % a redução nas tentativas de homicídio. O recebimento da remuneração variável dos policiais dependia do atingimento das metas. E as metas foram alcançadas. Os leitores dirão: pronto, está demonstrado que o incentivo financeiro é uma importante ferramenta para gestão de pessoas.

Seria estranho se assim fosse, já que diversos estudos demonstram que as estratégias de punição ou premiação são pouco eficazes se aplicados a profissionais do conhecimento. Mas números são números, não é mesmo? A resposta é não. Vou adiantar o que ocorreu.

No caso dos roubos, há um crime muito semelhante a ele que não estava sendo monitorado pelos indicadores do choque de gestão: trata-se do crime de extorsão. Este crime ocorre quando uma pessoa é obrigada a entregar um objeto sob ameaça. Já no caso do roubo, há a presença da violência ou da grave ameaça. São tipos penais semelhantes. Analisando-se os dados conjuntamente, verifica-se que a redução na curva do roubo implicou igual aumento na curva da extorsão. Ou seja, não houve redução do número de roubos, mas sim o já conhecido fenômeno do gaming. Os policiais começaram a jogar com as regras do jogo sem observar os objetivos da instituição. Com isso, alguns roubos passaram a ser enquadrados com extorsão. As metas foram atingidas sem qualquer benefício para a sociedade.

No caso das tentativas de homicídio, fenômeno parecido foi verificado. A redução das tentativas foi acompanhada por um aumento no número de lesões corporais. Houve caso de um homem que levou três tiros, dois na perna e um na barriga, que foi classificado como lesão corporal. O policial que fez o registro disse que o tiro foi dado de uma distância muito pequena; segundo o policial, caso se tratasse de tentativa de homicídio, a vítima teria morrido. Talvez nem o próprio policial tenha se dado conta do contorcionismo cerebral que ele foi obrigado a fazer para melhorar as metas.

A análise do número total dos dois crimes revela que eles tinham um patamar semelhante em 2008 (com leve vantagem para o homicídio tentado), mas nos anos seguintes – com a vigência das metas e remuneração variável – houve queda na tentativa de homicídio com simultâneo aumento da lesão corporal. O gráfico abaixo não deixa dúvidas sobre a maquiagem dos números:

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Como era de se esperar, o mesmo fenômeno foi observado em outros tipos penais, como recuperação de armas de fogo, por exemplo. Os policiais começaram a fazer operações na área rural – onde normalmente os residentes guardam armas de cano longo para proteção pessoal – , o que resultou em aumento da apreensão dessas armas. É verdade que se tratavam de armas ilegais, mas as estatísticas indicam que os crimes envolvem normalmente armas de cano curto.

Há de ressaltar ainda os efeitos nefastos no ambiente de trabalho decorrentes da implantação dos indicadores e metas. Tratando-se de organização militar, a hierarquia representa um valor intrínseco para essas organizações. Não há espaço para muitos questionamentos; as metas devem ser cumpridas. A manifestação dos servidores do órgão evidencia os equívocos decorrentes da coexistência de metas e forte hierarquia:

A estrutura organizacional e a cultura de ordem e hierarquia potencializam a disfunção, porque você é obrigado a cumprir.

Gestor da política de integração

Cobrança, é cobrança insistente. Você não pode ter: “ah, aqui tá faltando recurso agora, não teve aumento, eu vou deixar de lado.” No Comando de Policiamento da Capital eu fiquei durante quatro anos, todo dia eu aferia criminalidade, 15 em 15 dias reunião e cobrando em cima. Você não tem refresco, não tem refresco. É coisa mesmo, firme.

Coronel PM, núcleo estratégico.

É feito de tudo para cumprir ou para fazer crer que foi cumprida a meta. Dentro da PM meta é ordem. Tem que cumprir. Não é para evidenciar problema. No conceito da gestão para resultados um não cumprimento de meta deve ser evidenciado, pois pode não ser falta de esforço ou priorização. Pode ser que aquele não cumprimento tenha outras causas que precisam ser estudadas e debatidas com a chefia. Mas na PM não é assim, meta é pra ser cumprida, e não quero saber de desculpas […]

Gestor da política de integração, SEDS.

Como vimos, meta é para ser cumprida. E foi cumprida, mesmo que não houvesse qualquer ganho para a sociedade.

O principal indicador das forças de segurança, o número de homicídios por habitante, simplesmente não se moveu. Ao menos não se verificou o gaming quanto a este indicador – com substituição do assassinato pelo auto de resistência –, prática comum em diversos Estados da Federação. O que restou claro é que, se os números não são maquiados, não há melhora a ser apresentada. O gráfico abaixo – como todos aqui, elaborados por Luís Otávio Milagres de Assis -, evidencia que o impacto da introdução da remuneração variável sobre o número de homicídios foi imperceptível, já que não houve indício de maquiagem nos números:

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Como se pode notar, apesar de toda publicidade que cerca o choque de gestão mineiro, fica cada vez mais claro que esses métodos, que têm por premissa a implantação de indicadores e de prêmios de produtividade, raramente passam de estratégia de marketing, sendo seu objetivo último a busca pela valorização do governante de plantão.

No primeiro Governo Lula, o PSDB acusou o PT de entregar crescimento do espetáculo em lugar do prometido espetáculo do crescimento. Pois o Governo Aécio parece ter aprendido algo com o PT, visto que seu choque de gestão dificilmente foi além de um choque de publicidade. No próximo artigo, veremos como a experiência mineira nos apresentará a um importante conceito: a motivação intrínseca.

Gustavo Theodoro

Aécio e o Choque de Gestão IV

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Nas semanas anteriores fiz uma revisão das pesquisas mais modernas publicadas sobre indicadores, metas e remuneração variável. A maioria das informações aqui disponibilizadas foram extraídas da tese de mestrado de Luis Otávio Milagres de Assis, que realizou a pesquisa que será analisada a partir de hoje.

A administração pública brasileira tem tradição cartorial; seus dirigentes, em geral, são autocráticos e prezam em demasia pela hierarquia. Em parte por isso, os indicadores quase nunca são adequadamente produzidos.

No entanto, na Polícia Civil mineira a consultoria contratada tentou aplicar o manual dessas técnicas e o trabalho começou com envolvimento considerável dos servidores daquela organização. Apesar disso, na aplicação do sistema de indicadores, essas características negativas – como o excessivo apego à hierarquia – ressurgem. Na Polícia Militar, estrutura hierárquica por definição, já na construção dos indicadores foi possível perceber a resistência da organização em horizontalizar decisões. Neste artigo, no entanto, serão analisados apenas os resultados obtidos pela Polícia Civil.

Um dos indicadores criados afere o número de inquéritos executados por Delegacia. Caso o indicador tivesse por objetivo o aprendizado da organização, o número seria medido e o grupo que elaborou o indicador teria a incumbência de entender o resultado e propor alterações que pudessem tornar o serviço mais eficiente e produtivo. No entanto, o choque de gestão mineiro não tinha esse objetivo. Na visão de quem implantou o choque, as metas aliadas aos prêmios de produtividade cumpririam a função de motivar os servidores.

Foi estabelecida uma meta de 17 inquéritos por Delegacia. Como já aprendemos, trata-se de um indicador de atividade, que mede o produto (inquérito) e não o resultado (redução da criminalidade ou algo do gênero).

Os resultados foram decepcionantes. Os gráficos produzidos revelaram que, entre 2008 e 2011, nenhum ganho de produtividade foi observado. O que se notou é que as Delegacias que estavam um pouco abaixo da meta começaram a atingir as metas. E as Delegacias que já cumpriam ou ultrapassavam as metas tiveram sua produtividade mantida ou reduzida para o número de 17 processos. São efeitos previsíveis para quem conhece os mecanismos do gaming.

Logo após o estabelecimento da meta, mas antes de ela começar a vigorar, houve crescimento no número de inquéritos produzidos. Segundo avaliação da própria Polícia Civil, inquéritos velhos, podres, que só ficavam indo e voltando ao MP foram encerrados para que o início do sistema se desse em outro patamar. No entanto, este incremento que houve nos três primeiros meses não se manteve.

Espera-se que a produtividade seja bem representada por uma gaussiana, com a maioria produzindo ao redor da média. Pois na Polícia Civil mineira a curva se estreitou: os que produziam mais passaram a produzir menos e os que produziam menos passaram a produzir mais. Isto se explica pelo gaming, ou seja, os Delegados passaram a jogar o jogo dos números.

Se a meta do mês havia sido atingida, os novos inquéritos – mesmo os prontos – eram deixados para o período seguinte. Além disso, a própria apuração do crime começou a mudar. Em um crime que envolvesse gangues, por exemplo, diante da ocorrência de assassinato, o objetivo era encontrar aquele que puxou o gatilho, sem procurar investigar toda a gangue e os motivos do crime (geralmente tráfico de drogas). Ou seja, os indicadores incentivaram a solução parcial do crime, o que não contribuiu, no longo prazo, para a redução da criminalidade.

Um Delegado Geral do Núcleo Estratégico de Minas fez a seguinte avaliação do ocorrido:

Do ponto de vista da qualidade, não tenho dúvidas, houve um decréscimo da qualidade. Porque se prioriza a quantidade, não se prioriza a qualidade. E essa quantidade, você tem condições de influir sobre ela: você pode relatar os inquéritos mais fáceis de serem relatados e concluir os inquéritos mais fáceis de serem concluídos. Os mais complexos, que incidem sobre crimes mais complexos, de maior significado, esses vão ficando para trás. Esse é o efeito perverso.

Outro Delegado, chefe de departamento, que trabalhava além da conta, nos finais de semana e à noite, começou a ficar para trás. Ele fez a seguinte declaração após vivenciar cinco anos de trabalho com indicadores e de perceber a produtividade alheia muito superior a sua:

Eu era responsável pela área x na Polícia Civil, eu era quem mais produzia em número de inquéritos. Depois chegou outro delegado e produziu um número muito maior do que o meu. Eu fiquei sem entender como ele conseguiu aquilo, porque eu trabalhava sábado, domingo, feriado, de noite…. mas é um ritmo meu… aí pensei… não pode! Mágica não existe. Aí eu fui descobrir. Os meus relatórios tinham  conteúdo, o dele não. O relatório dele eram três parágrafos, sem entrar em mérito, sem entrar numa pesquisa de jurisprudência, sem fazer uma pesquisa doutrinária, mas aí é fácil, baixa tudo. Ou seja, era aquela coisa sem compromisso, talvez algo que possa significar piora no resultado… Então, a pessoa não quer compromisso. Hoje se trabalha estatística, número, número… e não está se aferindo qualidade.

Várias outras doenças próprias da instituição de indicadores foram verificadas. Houve diversos casos de Delegados pedindo arquivamento do inquérito sem que nenhuma diligência fosse realizada. Além disso, como a estrutura da Polícia Civil era muito hierarquizada, a ordem era para cumprir a meta a qualquer custo. Isto acabou forçando os Delegados a priorizarem casos de mais fácil solução – furto com um único envolvido –, por exemplo, diante de casos de maior complexidade.

Como vimos, apesar da aparente modernidade dos indicadores – que, repita-se, são necessários, mas precisam ser mais bem estudados -, os resultados de sua utilização na Polícia Civil mineira não foram animadores. O principal indicador criado media a atividade e não o impacto do trabalho da organização, o que contribuiu para o baixo resultado observado. Além disso, o indicador e a meta favoreciam o gaming. A implantação do indicador teve como efeito colateral reduzir a produtividade dos melhores funcionários além de tirar o foco dos reais objetivos da organização, que passou a dar preferência à solução de crimes mais simples, praticados por menor número de delinquentes e, pior, muitas vezes de menor potencial ofensivo para a sociedade.

No próximo post será analisada a introdução dos indicadores em uma instituição ainda mais hierarquizada: a Polícia Militar.

Gustavo Theodoro

Aécio e o Choque de Gestão III

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Na coluna anterior vimos como a implantação do sistema de indicadores, metas e remuneração variável traz com ele um conjunto de problemas que não se observavam antes de sua implantação. Tratamos do gaming, conjunto de técnicas aprendidas pelos membros da organização, que começam a jogar com os indicadores de acordo com as regras do jogo. Antes de passar à análise dos números de Minas Gerais – tarefa da coluna a ser publicada na próxima quarta-feira -, vamos analisar mais um problema, desta vez ligado à remuneração variável em decorrência da implantação de indicadores e metas.

Como vimos, o gaming maquia a resultado e inibe a produtividade. Hoje vamos tratar do efeito crowding-out, que afeta negativamente a motivação dos funcionários. Antes de tratar dele, é necessário fazer um breve preâmbulo histórico. A partir da emergência dos movimentos populares libertários da década de 1960, teve início a publicação de estudos que visavam à entender as melhores práticas adotadas na administração de pessoas a partir desse novo cenário. Naquela época vivia-se o tempo em que vigia a bizantina dúvida: será melhor vigiar e punir ou incentivar e premiar?

Até hoje vemos essa discussão presente em lugares mais atrasados. A ciência da administração já considera esta discussão superada, pelo menos para profissionais do conhecimento, pois as duas condutas são vistas como lados de uma mesma moeda. Mas na época, começou a prevalecer a tese de que incentivar e premiar era melhor vigiar e punir. E a iniciativa privada passou a adotar a premiação e os bônus como formas de se aumentar a motivação dos funcionários.

Muito bem. Na década de 1990, a questão da premiação entrou na pauta do serviço público. Quem primeiro fez este tipo de uso foi Tony Blair, em seu governo trabalhista, mas de cunho liberal. Assim, foram introduzidos indicadores, metas e remuneração variável. O que se observou a partir da introdução da remuneração variável foi o surgimento do fenômeno do crowding-out. Foi observado depois de alguns anos que, apesar do benefício financeiro, a produtividade se manteve inalterada ou mesmo apresentou queda. Estudos da psicologia comportamental revelaram a origem do problema.

Segundo a teoria da avaliação cognitiva, uma relação de trabalho inclui um aspecto extrínseco (dinheiro, prêmio, medo, cobrança) e um aspecto relacionado ao valor do que é feito, ao valor de como o indivíduo percebe seu serviço, seja em termos de devolução para a sociedade, seja em termos de contribuição para a organização. Na medida que a atividade passa a ser controlada ou premiada (quando o funcionário recebe a mais para fazer o que já é pago para fazer) por atingimento de meta, reduz a vinculação do funcionário com o objetivo da organização, já que ele está sendo controlado ou incentivado pelo dinheiro. Assim, o indivíduo transfere a responsabilidade da tarefa para quem está pagando por ela, isentando a si próprio de investir energia em sua realização.

Ou seja, o prêmio ou a cobrança aumentam a motivação extrínseca, mas reduzem a motivação intrínseca, resultando, ao final, em especial nos profissionais do conhecimento, redução na produtividade. Isto já fez muitos gestores ficarem perplexos diante do fato de que grandes incentivos em dinheiro não provocaram nenhuma modificação na produtividade dos servidores. E quanto a isto, as modernas teorias da psicologia comportamental (Dan Ariely e Max Bazerman) já vaticinaram: a motivação intrínseca é mais importante do que a motivação extrínseca no que concerne à produtividade de profissionais do conhecimento.

Há mais um agravante nisto tudo: diversos estudos indicam que a motivação intrínseca é ainda mais importante quando é o desempenho de servidores públicos que está em pauta. Segundo Weibel A., Rost K., and Osterloh M. (em um estudo publicado em 2010), no serviço público os funcionários têm, em geral motivação intrínseca significativa, realizando tarefas com senso de dever, lealdade e prazer, ou seja, realizam as tarefas porque acreditam nelas. Os pesquisadores, Buelens, Marc e Broeck,H. V. comprovaram em trabalho publicado em 2007 que os trabalhadores do setor privado são mais motivados pelos fatores extrínsecos do que os funcionários do setor público. Houston, no ano 2000, já havia chegado a esta conclusão, quando descobriu que as pessoas ocupadas no setor público têm valores e motivos diferentes daquelas empregadas em organizações privadas.

Assim, para evitar o efeito crowding-out, a organização deve cuidar para que todos entendam a natureza e o impacto de seu trabalho na sociedade. É ainda necessário que, caso se utilize indicadores, que eles reflitam da forma mais precisa possível o objetivo da organização, pois senão será observado o gaming. As metas, se existirem, devem ser pactuadas caso a caso com aqueles que a executarão, para que haja aderência entre indicadores e metas e os objetivos da organização.

Vamos notar na próxima semana que o Governo de Minas Gerais até tinha algum conhecimento da teoria, mas a hierarquização e o autoritarismo, muito presentes nas sociedades latino-americanas, sempre terminam por distorcer até as melhores ideias. Algo que não deu certo nos países centrais apresenta resultados ainda piores se importado para o Brasil. Será possível evidenciar ainda, nos resultados auferidos, a ocorrência das distorções de que tratamos nas últimas semanas.

Gustavo Theodoro

Aécio e o Choque de Gestão II

Porque os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias, que vão ao exterior procurar o caminho para as coisas desejadas.

Hobbes

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Na primeira coluna sobre o assunto foram introduzidas algumas definições que serão necessárias na análise futura dos resultados atingidos por Minas Gerais em seu choque de gestão. Neste artigo, será necessário percorrer um pouco mais o caminho da teoria, pois sem ela não seremos capazes de compreender os números produzidos pelo choque de gestão mineiro.

Donald Kettl em 1997 propôs uma classificação dos modelos de administração existentes no mundo. O primeiro, mais afinado com o nórdico, pode ser sintetizado pela expressão: let managers manage, ou seja, deixe o gerente gerenciar. O segundo modelo, mais próximo do modelo inglês, pode ser sintetizado por outra expressão: make managers manage. Ou seja, faça o gerente gerenciar.

No primeiro caso, a média gerência busca ela mesma a solução para os problemas, conversa com a equipe em busca dos melhores resultados. No segundo caso, como a cobrança será centralizada, com o tempo a gerência e a própria equipe começam a seguir ritmo de cobrança da organização. Ou seja, a cobrança centralizada esvazia as médias gerências, tornando-as inócuas, retirando sua motivação intrínseca, o que causa prejuízos ao desenvolvimento do trabalho, principalmente no longo prazo.

Raramente os indicadores podem ser considerados negativos por si sós. Pelo contrário, medir os resultados e ter metas é uma prática muitas vezes recomendável. A percepção dos indicadores também não é má entre os funcionários em geral. Entrevistas feitas em organizações que implantaram indicadores revelam frases do tipo: eles são bons; antes não sabíamos da nossa situação, agora sabemos; agora identificamos os problemas. Isto revela que, na verdade, os indicadores não são a causa dos males que eles acarretam.

No entanto, como escrevi no primeiro artigo da série, é preciso separar a atividade de construir os indicadores e medir aspectos da organização da atividade controlar e cobrar com base nos indicadores.

No sistema nórdico, indicadores são acompanhados pela organização com o objetivo de aprendizado, voltado ao autoconhecimento, em busca de identificar os pontos falhos e buscar caminhos que aumentem a eficiência e a satisfação dos servidores. No sistema inglês, indicadores são criados e utilizados para cobrança. Esta pequena distinção no uso dos indicadores pode fazer toda a diferença no ambiente e nos resultados obtidos pela organização.

Quando se utiliza os indicadores com a finalidade de cobrança ou mesmo de premiação (como vimos no primeiro artigo, tanto a ameaça de punição quando a possibilidade de premiação se relacionam à motivação extrínseca), pode emergir o fenômeno do gaming. A palavra se refere à situação em que os controlados aprendem a regra do jogo e passam a jogar segundo seus interesses, mesmo que contrários aos objetivos da organização.

Como se sabe, com a informatização é possível medir tudo (ou quase tudo). Na década de 1990, as Administrações Públicas começaram a estabelecer indicadores (que buscavam ter relação com o objetivo da organização) e, partir deste ponto, iniciou-se a busca por metas. Junto com isso veio a remuneração variável relacionada ao atingimento da meta. Voltaremos a este ponto em outro artigo da série.

Em 2007, C. Hood definiu o gaming como a deliberada distorção ou fabricação de números coletados com a intenção de melhorar a posição de um indivíduo ou organização. É forte a definição, mas hoje já se sabe que o gaming sempre acompanha a implantação de indicadores e a cobrança de metas. Passo a listar os três tipos mais comuns.

O primeiro é conhecido como rechet effect, ou efeito bola de neve. Ele ocorre quando os funcionários percebem que as próximas metas serão influenciadas pelo desempenho obtido no presente. Com isto, tem início a administração do serviço. Os funcionários começam deliberadamente a trabalhar menos, pois sabem que, se muito for feito, mais ainda será exigido no futuro.

O segundo tipo é o nivelamento por baixo – threshold effect. Quando metas iguais são impostas a todos, não há incentivos para a excelência, fazendo com que os que produzem mais se sintam desencorajados a assim procederem, o que acaba reduzindo a produtividade global.

O terceiro tipo é a distorção de objetivos – hitting the target and missing the point -, ou seja, atingir o alvo mas não o objetivo. São os casos em que mais trabalho é feito com menos qualidade ou mais pessoas são atendidas sem resolver o problema, entre outros.

Esses efeitos colaterais, em muitos casos, fazem com que a produtividade após a implantação dos indicadores seja inferior à havida antes de sua implantação. Muito interessante tudo isso, não é mesmo? Detalhe: isto acontece sempre, em qualquer organização, de qualquer país, que se aventure a estabelecer metas rígidas em um ambiente de forte cobrança.

Vai abaixo um glossário com as mais diversas técnicas de gaming, tal como proposto por P. Smith:

Visão tunelada – Diante de diversas possíveis metas, gestores escolhem aquelas mais fáceis de serem mensuradas e ignoram as restantes.

Sub-desempenho – Ocorre quando gestores trabalham de forma a atingir suas metas específicas mesmo que isso gere consequências negativas para o sistema como um todo.

Miopia – Ocorre quando gestores focam seus esforços em metas de curto prazo em detrimento de objetivos de longo prazo.

Fixação na medida – Quando impactos são difíceis de medir, existe a tendência natural de utilizar indicadores baseados em produtos/serviços. A fixação na medida ocorre quando esse indicador torna-se o foco em detrimento do impacto desejado.

Distorção oportunista – É uma forma de fraude que ocorre quando a informação sobre desempenho é reportada de forma oportunistamente negligente ou ainda distorcida para causar boa impressão.

Interpretação distorcida – Ocorre em função da imprecisão de medidas estatísticas, em situações onde listas com ranqueamento de desempenho tenham resultados muito próximos, fazendo com que desempenhos semelhantes sejam reportados – e interpretados – como distintos.

Efeito bola de neve – Ocorre quando gestores oportunistas buscam resultados ruins no período corrente para não serem desafiados com metas ousadas no próximo período.

Cristalização da medida – Ocorre quando um indicador de desempenho anteriormente utilizado perde seu propósito, mas ninguém tem a iniciativa ou interesse de retirá-lo.

Como se pode notar, a implantação de indicadores é mais arriscada do que pode parecer inicialmente. Os indicadores e metas foram implantados nos países de língua inglesa na década de 1990, mas hoje são motivo de piada por lá. Duas séries televisivas dos anos 2000 tratam das metas com escárnio, ou deboche mesmo, denunciando as práticas de gaming que passaram a predominar nas organizações. Uma delas é a inigualável The Wire, provavelmente uma das melhores séries da história, que revela o traço cruel dos indicadores aplicados nas áreas de educação e segurança. O mesmo fenômeno é descrito em uma série inglesa de nome Line of Duty, que revela as táticas utilizadas pela polícia para driblar as estatísticas – aumentando a taxa de resolução de crimes por meio de acordos em que culpados por outros crimes confessam crimes de terceiros -, sem atentar para os verdadeiros objetivos da organização.

Tanto os EUA como a Inglaterra aderiram com disposição a esses sistemas de metas, indicadores, remuneração variável, rankings, bônus e cia. Por isso, a TV de lá, quando o sistema caiu em descrédito há cerca de 15 anos, começou a escarnecer desse sistema. Aqui ainda estamos em uma fase embrionária, ainda tendemos a considerar moderno quem fala em indicadores, metas e choque de gestão. Tanto é assim que Aécio Neves pretende utilizar esta bandeira em sua campanha.

Na coluna da próxima quarta-feira teremos um pouco mais de teoria e, a seguir, passaremos a analisar os números do choque de gestão mineiro extraídos da Tese de Mestrado de Luís Otávio Milagres de Assis apresentada à Escola de Administração da FGV São Paulo, de onde foi obtida parte da teoria acima exposta.  

Gustavo Theodoro

Aécio e o Choque de Gestão I

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A campanha eleitoral se aproxima. Aécio Neves deve ser candidato na eleição presidencial do final do ano. Essencialmente, é a política que domina os debates. Em muitos momentos ela se assemelha à mera administração das coisas (tal como denominou Marx, em sua utopia de sociedade sem estado). Mas nunca é só isso. Por vezes, é necessário aprofundar os estudos sobre administração pública, visto que métodos importados são associados à eficiência, e a eficiência é associada ao político que importou as ideias.

Aécio Neves se diz um grande administrador. Para comprovar tal fato, apresenta seu choque de gestão como cartão de visitas. Em sua visão, o ambiente burocrático e sem incentivos aos melhores servidores foi substituído, em seu choque de gestão, por um sistema supostamente moderno adotado em algumas partes do mundo: trata-se do método de indicadores com a adoção de bônus por produtividade. Onde quer que se vá, indicadores e bônus são vistos como sintomas de administrador eficiente e moderno. Como veremos, a ciência não é tão enfática na defesa de métodos como esses. Sigamos com a análise.

Desde o início dos anos 2000, não só Minas Gerais, mas toda Administração Pública brasileira está fascinada pelos indicadores, metas e pela remuneração variável. Como se sabe, as empresas utilizam há décadas os bônus de final de ano ligados diretamente ao resultado das empresas. Por muitos anos, vincular maior produtividade aos bônus financeiros era considerado um truísmo, um obviedade, algo que nem mereceria um estudo mais apurado. Nos últimos 20 anos, a eficácia da remuneração variável e do sistema de metas começou a ser aferida também na Administração Pública.

Antes de prosseguir, é interessante que sejam feitas algumas distinções. Apesar de a literatura trazer diversas classificações dos indicadores, vou me fixar aqui na que os separa em apenas dois tipos: os indicadores de produto e os indicadores de resultado. Em linguagem simples, os indicadores de produto medem atividades (número de inquéritos finalizados, número de provas corrigidas), enquanto os indicadores de resultado medem o efeito do trabalho sobre onde se quer atuar (número de homicídios e taxa de analfabetismo). Ou seja, medem o impacto das políticas adotadas.

Quanto à utilização (não vou me alongar nas divisões doutrinárias que envolvem o assunto), são duas as mais importante funções dos indicadores: as funções de aprendizagem e as funções de medição/meta/cobrança.

É importante que estes dois conceitos trabalhados acima (tipos de indicadores e funções de indicadores) estejam claros para todos, pois isto tem impacto gigantesco no modo como eles atuam nas organizações.

Da área de psicologia comportamental, trazemos os conceitos de motivação intrínseca e extrínseca. A motivação intrínseca tem ligação com o valor que a pessoa dá a seu trabalho, a importância que o servidor reconhece na tarefa desempenhada, enquanto a motivação extrínseca se relaciona com o sistema de cobranças e recompensas provenientes da organização.

Dos anos 1980 para cá, as empresas privadas têm preferido reduzir o ambiente de cobrança, particularmente devido ao perfil das novas gerações, que não se sujeita a trabalhar em organizações doentes. Empresas como a Google são exemplo não pelo seu tamanho, mas por cultivar um ambiente de trabalho que incentiva a criatividade, atribuir valor às ideias dos funcionários, dar responsabilidades para que cada um administre seu tempo da melhor forma que lhe convier. Dentre os binômios cobrança/punição, incentivo/premiação, as empresas privadas bem sucedidas aderiram ao segundo tipo de motivação.

Tanto o sistema de cobrança/punição ou quanto o sistema de incentivo/premiação tratam da motivação extrínseca, a qual já nos referimos acima. Vamos ver, depois, o que os trabalhos científicos nos dizem sobre as melhores formas de lidar com a motivação dos funcionários e, em especial, com a motivação dos servidores públicos.

Para não ficar só na teoria, nos anos 1990, a Inglaterra introduziu os prêmios de produtividade para o serviço público. Isto deu a oportunidade para que diversos pesquisadores avaliassem os efeitos da introdução dos indicadores sobre a produtividade. O conhecimento científico, usualmente, é segmentado, e os estudos deste assunto requerem conhecimentos tanto da área de economia quanto da área de psicologia comportamental. Há diversos trabalhos publicados sobre o assunto, mas quase nenhum se apoia nos conhecimentos já formulados pelas duas áreas; sendo áreas que não se comunicam, o estudo em separado prejudica o desenvolvimento da matéria.

É possível agora fazer a pergunta: onde o Aécio Neves entra nessa história. Bom, antes de chegar a ele, é necessário rever mais alguns conceitos de Administração para só então voltar o olhar ao choque de gestão mineiro. Para não desviar o foco do blog, apenas às quartas-feiras serão publicadas colunas sobre o assunto.

Gustavo Theodoro