A aplicação na medicina da cannabis costuma enevoar o tema da liberação das drogas para fins recreativos. Apesar de terem alguns pontos de contato, uma discussão jamais deveria afetar a outra.
A proibição do uso de algumas drogas derivadas de plantas (como a cannabis ou a papoula) inibiram o desenvolvimento de pesquisas que tivessem como objetivo o desenvolvimento de novos medicamentos. Apesar dessas dificuldades, pelo menos dois dos constituintes da papoula estão completamente integrados à prática médica: a morfina e a codeína.
Já com relação a cannabis, seus constituintes são muito pouco utilizados pela medicina. Em parte, isso se deve ao estigma que acompanha a pesquisa da substância. Muitas vezes, a confusão é introduzida pelos próprios movimentos que defendem a liberação da maconha para uso recreativo, que tentam aproximar sua causa às de pessoas que poderiam se beneficiar com algum dos constituintes da cannabis.
O caso mais recente envolve o cannabidiol, remédio aprovado pela FDA (em caráter experimental), que parece promover melhorias na saúde de pessoas portadoras de epilepsia ou que sofram crises recorrentes de convulsão. As famílias de pacientes – geralmente crianças – acometidas de doenças com esse sintoma relatam que o cannabidiol tem efeitos notáveis na redução das convulsões, especialmente quando os remédios tradicionalmente utilizados (como o clonazepan) não produzem o resultado esperado.
Apesar das dificuldades que envolvem a pesquisa com plantas e substâncias proibidas – dificuldades essas que efetivamente reduziram o ritmo das pesquisas -, grande parte dos princípios ativos das plantas proibidas já foi identificada, e para boa parte delas já há testes clínicos em andamento. O THC – um dos principais constituintes da cannabis – já é comercializado em uma dezena de países. No entanto, há medicamentos mais eficazes do que ele para suas principais aplicações.
O Brasil é considerado pela indústria farmacêutica um país onde a pesquisa é extremamente cartorial, regulada e burocratizada, o que afasta de nós não só o teste de medicamentos, mas também a pesquisa básica. Assim, para autorizar a comercialização de novo medicamento no Brasil, a ANVISA depende de pesquisas realizadas em outros países, cujos resultados são publicados em revistas de reconhecimento internacional.
Agora que o cannabidiol começa a ser reconhecido para um uso específico na comunidade médica, a ANVISA estuda liberar sua importação, com receituário controlado e uso específico no combate à convulsão. Antes que os que leem esse texto já vislumbrem a possibilidade de fazer uso do medicamento para outros fins, faz-se necessário esclarecer que o cannabidiol não produz qualquer efeito na percepção da realidade.
Toda a discussão trazida acima pode nos levar a algumas conclusões:
a) o uso médico de substâncias presentes nas plantas proibidas não se confunde com seu uso recreativo;
b) até o momento, são muito poucas substâncias presentes na cannabis que comprovadamente são úteis na medicina;
c) a proibição do uso recreativo jamais deveria interferir na pesquisa de novas drogas derivadas dessas substâncias.
Em declaração a respeito da interferência do tema medicamentos no debate sobre a liberação das drogas, é elucidativo mencionar a fala do Dr. Antônio Geraldo da Silva, Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria: “O veneno de cobra contém princípio ativo utilizado na formulação de remédio para uso humano; nem por isso passamos a defender a liberação do uso de veneno de cobra pela população.”
Gustavo Theodoro