O Filósofo da Porta dos Fundos

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Em “O Estrangeiro”, o personagem do livro de Camus vive uma vida sem sentido e toma para si a liberdade de tirar a vida de alguém, um desconhecido que passeava em uma praia da Argélia. O personagem de Camus buscava um sentido para sua existência e tratou de arranjar um: no decorrer do livro, o personagem se vê às voltas com esse assassinato.

Quem se lembra do filme Amnésia (Memento) deve perceber que o desespero do personagem principal daquele filme, cuja memória recente não vai além de alguns minutos, é semelhante ao personagem de Camus. Tal como em O Estrangeiro, em Amnésia o desmemoriado do filme cria para si, nos poucos minutos que lhe restam de memória, uma busca que lhe dê sentido à vida.

Mal comecei e já me desviei do assunto que iria tratar. Volto ao tema que já ocupou alguns artigos anteriores. Meu foco no personagem de Camus é a liberdade por ele exercida: em um mundo sem códigos e sem sentido, como julgar a correção de cada ato? Que régua usar? Cito novamente Dostoievski: se Deus não existe, será que tudo é permitido?

Volto a opor aqui dois de meus filósofos preferidos: Kant e Nietzsche. Kant expôs os limites de nossa racionalidade. Foi além de Sócrates com seu apenas sei que nada sei. Kant, ao contrário, sabia exatamente o que podia saber.

A limitação de nosso saber, para Kant, se dava por dois lados: um, pelos nossos sentidos, que só apreendem objetos situados no espaço e no tempo; outro, pelo nosso entendimento, que vai pouco além de categorias como qualidade e quantidade.

Assim, com apoio exclusivamente na razão, não se pode afirmar nada a respeito de Deus, pois só apreendemos o mundo como fenômeno, como ele nos aparece. Deus não aparece a nossos sentidos. Se existe como coisa em si, a razão não nos dará nenhuma resposta. Para todo o resto, Kant nunca preocupou demasiadamente com o fato de não termos acesso às coisas como elas realmente são, à coisa em si. Pelo contrário: ele aceitava o mundo como lhe era dado.

Essa é a razão pura de Kant. Nela não há espaço para Deus. No entanto, para escrever o seu Crítica a Razão Prática, Kant retomou os conceitos de Deus e imortalidade da alma, que passaram a ser admitidos pelo filósofo como ideias reguladoras. Ou seja, para Kant, no campo da razão prática, devemos agir como se Deus existisse e como se a alma fosse imortal.

Críticos do filósofo de Königsberg passaram a escarnecer de Kant, tratando sua filosofia pela alcunha mordaz de filosofia da porta dos fundos. Para esses críticos – Nietzsche entre eles -, Kant teria expulsado Deus pela porta da frente (da razão pura) de seu edifício filosófico para readmiti-lo pela porta dos fundos (da razão prática). E Nietzsche não deixou por menos: classificou esse procedimento de intelectualmente desonesto. E em diversos pontos a crítica de Nietzsche a Kant é irretocável.

Gustavo Theodoro

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