As Portas da Percepção IV – Cortina de Fumaça

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Em 2010 foi lançado um documentário de nome Cortina de Fumaça (disponível no YouTube, legendado em português), do Diretor Rodrigo Mac Niven, que procura expor a visão dos que defendem a liberação das drogas. Foram ouvidos historiadores, políticos, policiais, advogados, juízes, todos críticos da criminalização do tráfico e do consumo de drogas, em especial da maconha (mas não só dela).

Interessante observar que, dentre os entrevistados, não há um único que lide com aqueles que se tornaram dependentes das drogas (como a rede de apoio aos dependentes e os médicos responsáveis por clínicas de desintoxicação). Como se sabe, há no Brasil pelo menos um milhão de dependentes de crack. É difícil precisar o número de usuários de maconha. Estudo recente da Unifesp revelou que pelos menos um milhão e meio de pessoas utiliza maconha diariamente – o uso recreativo pode estar na casa dos três milhões. Os números da cocaína não são muito distantes desses.

Com isso, por todo o Brasil há uma rede – insuficiente, por certo – que atende aos dependentes e a suas famílias. São os Narcóticos Anônimos e as clínicas públicas (muito poucas) e privadas especializadas em dependência química. Estes profissionais e voluntários lidam diariamente com o mais grave efeito das drogas: a dependência, que geralmente destrói a vida do usuário e de suas famílias.

Ninguém dessa rede de proteção foi convidada a dar seu depoimento no filme. Nenhum médico que faz o acompanhamento de pacientes em tratamento foi convidado pelos produtores da obra audiovisual. Isso nos dá certeza sobre o objetivo do documentário, que é servir de panfleto para disseminar as ideias ligadas à legalização do uso de drogas hoje ilícitas.

A ciência tem suas regras de formação de consensos. Eventuais benefícios de qualquer nova substância são estabelecidos após longo processo de pesquisa e testes. Realizados os testes, os grupos de pesquisa publicam seus resultados para que outros grupos possam realizar igual experimento. O uso em seres humanos só é autorizado pelos órgãos reguladores quando os testes comprovam a segurança e a efetividade das substâncias no combate ou no alívio de sintomas de doenças. Sob este prisma, é importante fazer uma declaração enfática: a ciência não indica o uso de maconha, absorvida por meio do cigarro, em nenhuma hipótese. Os médicos são unânimes em esclarecer que, caso algum princípio ativo venha a ser admitido – como o cannabidiol, por exemplo -, ele será comercializado em forma de comprimidos ou por via venosa. Não há que se confundir o uso terapêutico dos constituintes da maconha ou do ópio com o fumo dessas substâncias. No filme, estes conceitos são propositadamente misturados.

No documentário, há diversas declarações de especialistas em maconha indicando seu uso para as mais diversas doenças. Nenhum aviso é dado a quem assiste ao documentário de que nunca uma pesquisa realizada por instituição médica reconhecida no meio científico referendou o uso medicinal do cigarro de maconha.

Alguns outros argumentos são lançados dentro do formato pouco linear do documentário. Logo de início, um historiador diz que a humanidade sempre utilizou drogas, dando a entender que deveríamos continuar utilizando-as. E que todos usamos drogas, já que até a cafeína – presente em chás e cafés – é droga. Esse jogo de palavras é próprio de quem quer confundir e não esclarecer. Droga é um termo polissêmico, que pode ter seu sentido manejado para jogar névoas sobre o debate. É evidente que não são todas as drogas que são proibidas. São algumas drogas específicas que estão na lista de proibição. E quando se diz que a humanidade sempre utilizou drogas, é obvio que o foco está nas drogas que alteram nossa percepção da realidade.

A afirmação de que a humanidade sempre usou drogas parece muito abrangente. Drogas, no sentido da discussão do documentário, foram consumidas por uma parcela da população ao longo da história. E boa parte delas continua legalizada. A discussão atual é outra: dezenas de drogas são fabricadas atualmente e nem todas têm sua segurança comprovada. Com relação às drogas legalizadas, conhecemos bem seus efeitos nefastos na sociedade (tema que será tratado oportunamente). Logo, o argumento de que sempre utilizamos drogas não nos autoriza a dizer que todas as drogas, mesmo as mais novas e menos estudadas, devam ser liberadas.

No documentário, o argumento principal de policiais, juízes e advogados gira em torno da suposta derrota dos governos na batalha contra as drogas e na violência que o tráfico de drogas supostamente desencadearia. Conforme já tratei em colunas anteriores, o fato de não exterminarmos o tráfico não implica que devamos liberar as drogas. Tampouco o argumento da violência é convincente, já que diversos países com rígida proibição do comércio de drogas não são violentos. Ou seja, a droga só teria o poder de causar violência aqui, mas não na Suécia. Não me parece provável supor que a liberação da maconha poderia reduzir o comércio do crack, por exemplo. E duvido muito que um dia venhamos a liberar a comercialização do crack, visto que é inegável seu potencial destrutivo (pesquisas da Unesp constataram a morte de 30% dos usuários de crack em dez anos). Logo, a liberação do comércio da maconha não acabaria com o tráfico de drogas e tenho dúvidas que tenha algum poder na redução de seu lucro.

O fato é que o relaxamento da política de combate às drogas ocorrido a partir da alteração legislativa de 2006 – que livrou os usuários da prisão – pode estar relacionado ao aumento de consumo de drogas em cerca de 40% desde então. Não se pode afirmar que haja relação de causalidade, mas é certo que há correlação: aumentou o consumo quando a repressão diminuiu.

Por fim, é de se notar que o documentário não é analítico. A edição é implacável e impede que as entrevistas fluam e que os entrevistados se aprofundem no assunto; ou talvez o método seja proposital, pois o aprofundamento das ideias pelos entrevistados poderia revelar suas inconsistências.

O documentário Cortina de Fumaça é absolutamente parcial, pseudocientífico, não passando de um mosaico desconexo de opiniões e entrevistas sem qualquer rigor científico. Não passa de mero panfleto produzido pela milionária campanha a favor da liberação das drogas.

Gustavo Theodoro

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