No passado, temiam-se as pessoas naturalmente más, que praticavam o mal para seu próprio deleite. Aliás, mesmo na antiguidade a maldade era tomada por algo prazeroso. Tomás de Aquino chegou a escrever que, dentre os prazeres do paraíso, estava a contemplação dos sofrimentos do inferno. Nietzsche ficou horrorizado com este pensamento. E é mesmo para se horrorizar. Só algum tempo depois Tomás de Aquino se deu conta da incorreção do que escreveu e substituiu o prazer com contemplação dos sofrimentos do inferno por prazer com a justiça divina.
Tratando ainda do mal que mais interessava no passado, Kierkegaard escreveu que todo mal radical vem das profundezas do desespero. Freud talvez tenha acertado mais nessa área, apesar de sua obsessão pela atribuição de motivos sexuais como explicação para quase tudo.
Para a política, interessa mais o mal praticado pela indiferença que o mal radical. Foi o totalitarismo que revelou os perigos do mal praticado não por sádicos, mas pelos que abriram mão de pensar. É evidente que os alemães, mesmo os nazistas, não eram todos sádicos. Nos julgamentos ocorridos após a Segunda Guerra ficou bastante claro que a maioria que contribuiu para o Holocausto era composta de pessoas como outras quaisquer, exercendo com zelo suas atribuições naquela estrutura.
Eichmann era tido como um monstro, responsável pelo transporte de judeus para os campos de extermínio. Em seu julgamento, não se viu traços de um monstro, mas de um funcionário que procurava cumprir suas atribuições profissionais, dispensando a si mesmo do exercício do pensamento.
Ainda hoje grandes organizações revelam funcionários alinhados com as chefias, incapazes de exercer o juízo crítico, para o qual o pensar é indispensável. O contínuo interromper do pensamento limita a capacidade do ser humano de executar essa funcionalidade. Kant dizia que o poder exterior que priva o homem da liberdade de comunicar os seus pensamentos publicamente priva-o ao mesmo tempo da sua liberdade de pensar. O que a modernidade demonstrou é que mesmo quando a comunicação do pensamento é admitida, o homem médio prefere não pensar.
Daí o temor do homem moderno face à máquina burocrática do estado ou das grandes organizações que tratam a todos com impessoalidade. Se no passado pensávamos que os modelos tirânicos eram mais propícios à inibição do pensamento, hoje sabemos que a democracia representativa tem o mesmo efeito.
Trotsky foi um dos líderes da Revolução Russa, mas depois passou a ser perseguido por Stalin quando este assumiu o poder; Stalin acabou por assassinar Trotsky em território mexicano, onde se exilara. O último texto escrito por Trotsky antes de sua morte ilustra adequadamente o tema deste artigo: Stalin tomou conta do poder não com a ajuda de suas qualidades pessoais, mas com a ajuda de sua máquina impessoal.
Em que momento agir, como colocar o pensamento a serviço de uma sociedade melhor, atuando em sua rotina diária e combatendo o mal, principalmente esse mal indistinto e impessoal, cabe a cada um refletir isoladamente. Quem nos auxilia nesta área – ainda que revele a dificuldade da tarefa – é o grande pensador e político conservador Edmund Burke, que diz que a sabedoria consiste em saber quanto mal deve ser tolerado.
Gustavo Theodoro