Joaquim Barbosa

Em primeiro de julho de 2014, o Ministro Joaquim Barbosa presidiu sua última sessão do Supremo Tribunal Federal. Depois de pouco mais de uma década, ele fez parte da transformação por que o STF passou nos últimos anos. As sessões com transmissões ao vivo e a visibilidade dos temas julgados modificaram a imagem da Egrégia Corte, aproximando-o da população. Para o bem ou para o mal, Joaquim Barbosa fez parte desse processo.

Portador de um currículo de boa envergadura, com títulos obtidos no exterior, Joaquim Barbosa foi inicialmente reverenciado por ser negro, em nossa estranha forma de manifestar racismo. Posteriormente, seu temperamento e sua coragem começaram a protagonizar o julgamento de sua figura pública.

Como é próprio desta Ágora, gosto de destacar a forma como os torcedores de partidos políticos se manifestam de acordo com a ocasião, com o mesmo personagem envolvido.

A primeira grande polêmica pela qual Joaquim Barbosa será lembrado se deu no tempo em que Gilmar Mendes era o Presidente do Supremo. Gilmar Mendes sempre foi identificado com o Governo FHC, que o indicou após seu trabalho na AGU. Gilmar Mendes deu diversas declarações à imprensa que desagradaram ao PT e a setores do Governo. No entanto, foi o episódio Daniel Dantas que inflamou o ânimo do plenário naquela época.

Daniel Dantas havia sido preso na Operação Satiagraha e solto por Gilmar Mendes. Após nova prisão de Daniel Dantas por suposta tentativa de compra testemunhas, Gilmar Mendes novamente determinou sua soltura, em decisão considerada polêmica, visto que não era clara a competência do STF para proferi-la. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa discutiram violentamente, com mútuas acusações; Daniel Dantas era o pano de fundo daquele desentendimento.

A imprensa simpática ao Governo do PT imediatamente tomou o partido de Joaquim Barbosa, tido como herói por verbalizar aquilo que poucos teriam coragem. A Revista Veja e seus blogs atacaram Joaquim Barbosa, acusando-o de destemperado, sendo considerado despreparado para ocupar a função de ministro naquela corte. Naquele momento, Luis Nassif destacou que o currículo de Joaquim Barbosa era bastante superior ao de Gilmar Mendes, seguindo a linha comum daqueles tempos.

Quando a denúncia relativa à AP 470 foi aceita – Mensalão, os advogados de defesa de todos os réus apresentaram argumentos para que o julgamento não fosse desmembrado. É importante lembrar que, até aquele momento, nunca o STF havia condenado uma autoridade com prerrogativa de foro. Era consenso entre os advogados que o julgamento no Supremo era garantia de impunidade. Por isso a defesa dos advogados dos réus pelo julgamento naquela corte.

Algum tempo depois ficou claro que Joaquim Barbosa iria fazer o processo chegar até o fim. Delúbio Soares havia previsto que toda aquela história iria se transformar em uma piada de salão. O ritmo das oitivas determinado por Joaquim Barbosa parecia indicar que os réus, afinal, teriam seus crimes apreciados pelo STF. Neste momento, a torcida passou a se inverter.

Para a imprensa amiga do Governo Federal, Joaquim Barbosa passou a ser criticado por não dar direito de defesa aos acusados, por atropelar etapas e, em certo momento, chegaram a acusá-lo até pela apreciação conjunta dos autos, quando foram os próprios réus que combateram o desmembramento (é importante lembrar que Joaquim Barbosa votou pelo desmembramento, mas foi vencido pela maioria de então).

Luis Nassif atacou Joaquim Barbosa, acusando-o de ter entrado pelas cotas, em inacreditável manifestação de racismo. Ao mesmo tempo, as decisões de maior rigor processual de Joaquim Barbosa começaram a ser elogiadas pelos que antes o criticavam (como o blogueiro Reinaldo Azevedo, da Revista Veja).

O julgamento do Mensalão transcorreu com certa tranquilidade, apesar da evidente pressão sofrida pelos Ministros. Réus cuja culpa não se comprovou foram inocentados. Réus que se envolveram na engenharia de lavagem de dinheiro – como os sócios da SMP&B, os diretores do Banco Rural e os líderes partidários -, quase todos foram condenados.

A polêmica centrou-se na culpa de José Dirceu, que para muitos foi condenado por responsabilidade objetiva. Não é minha opinião. Havia provas, ainda que não se utilizasse a teoria do domínio do fato (que não se assemelha à teoria da responsabilidade objetiva). A família de José Dirceu foi beneficiada financeiramente por membros da organização. Além disso, houve reunião não explicada no Palácio do Planalto com os operadores do esquema, como Marcos Valério, Kátia Rabelo (dona do Banco Rural) e Delúbio Soares. Para penalistas, reunir-se com esses personagens em conjunto, na época em que os crimes eram cometidos, tem o mesmo efeito que constatar que um suspeito de homicídio esteve no local do crime no momento do assassinato.

Em todo o processo, Joaquim Barbosa portou-se com muita coragem. Seus defeitos também emergiram. Não é um homem para atuar em colegiado, pois demonstrou muito pouco respeito pela opinião alheia. Além disso, seus julgamentos, em alguns momentos, revelaram que sua percepção de culpa dos réus o levou a aumentar algumas penas (como no caso da formação de quadrilha) e ser excessivamente rigoroso no cumprimento das penas (como no caso da jurisprudência do STJ sobre o regime semiaberto).

Seus defeitos revelaram traços de humanidade, o que pode ter nos ajudado a compreender que, independentemente da inteligência ou do preparo, julgamentos ainda são sujeitos ao espírito do tempo, ao clima do colegiado, às transmissões da TV e às pressões de todos os lados.

A velha ideia de Kant de que há dois tipos de juízos, um reflexionante – para questões abertas, como a arte, por exemplo – e um determinante – que seria o judicial, cuja análise por homens isentos levariam a decisões idênticas -, mais uma vez se comprovou equivocada. Daí a importância dos órgãos colegiados, em que embates sobre as mais diversas teses podem, por vezes, fazer com que o colegiado tenha acesso a todos os argumentos. É nesse aspecto que Joaquim Barbosa cometeu suas maiores falhas. Diversos foram os momentos em que o magistrado demonstrou ter pouco respeito pela opinião alheia, interrompendo ou tratando com arrogância – ou grosseria mesmo – seus colegas, apenas em razão das opiniões divergentes apresentadas.

No entanto, é também preciso reconhecer que, sem Joaquim Barbosa, muito provavelmente o processo do Mensalão não seria nem mesmo levado a julgamento, em razão da aplicação dos prazos prescricionais que extinguem a punibilidade dos réus.

Como todos os personagens da vida pública, suas diversas características serão levadas em consideração quando de seu julgamento histórico. Acredito que um bom historiador não poderia deixar de registrar a coragem de Joaquim Barbosa, ao mesmo tempo em que teria que destacar que seu convencimento da condenação dos réus o fez atropelar algumas normas processuais e penais.

Coragem justifica arrogância. Justiça não se confunde com justiçamento. Como todo grande personagem da história contemporânea, Joaquim Barbosa provoca questionamento justamente por equilibrar boa quantidade de qualidades e defeitos. Esperemos que a história saiba apresentar todas as faces desse marcante personagem.

Gustavo Theodoro

2 comentários

  1. Talvez o texto menos parcial que já li (e foram muitos) sobre Joaqium Barbosa. Mas, mesmo assim, considero parcial (assim como a minha própria opinião): pelo texto, ele teria seus defeitos (arrogância, grosseria, pouco respeito pelos colegas) mas teria também seu mérito – coragem.
    Discordo. Ele ocupava um cargo vitalício, topo de carreira e cúpula de um dos poderes da República. De que ele poderia ter medo? Não vejo resposta possível. Um Ministro do STF, especialmente enquanto presidente, é inatingível. Além disso, teve todo o senso comum do Brasil a seu favor, ou seja, toda a platéia era-lhe favorável, inclusive os meios de comunicação em massa. Chamado de herói. Não vejo nenhuma coragem em se portar como déspota, além de atribuir caráter essencialmente político às decisões da Corte JUDICIAL máxima de um Estado de Direito.

    Considerar que ter colocado o julgamento em pauta foi um dos méritos também vejo como um equívoco, em termos institucionais, mesmo partindo-se da premissa de que os condenados eram mesmo culpados de alguma coisa. Isso porque várias outras denúncias do tipo, inclusive de fatos anteriores, não têm o mesmo tratamento. O maior exemplo, até agora, é o caso de Eduardo Azeredo, cujo julgamento o STF não aceitou fazer, remetendo-lhe láááá pra MInas Gerais, onde seu partido domina em todas as esferas. Isso é muito grave: pessoas que nunca sequer ocuparam algum cargo público foram julgados em única instância pelo STF (banqueiros, publicitário, etc), enquanto que Azeredo, parlamentar que renunciou exatamente para escapar, foi aliviado.

    Não é corajoso, é um covarde. A última prova disso foi a sonegação do direito legal do advogado de Genuíno de usar a palavra e se dirigir à Corte, seguida de sua expulsão da sala à força física dos seguranças da casa, usados como seus capangas particulares.

  2. Prezado Roberto,
    Veja que o Joaquim Barbosa queria desmembrar o processo quando aceitou a denúncia. Foram os garantistas, puxados pelo Levandowski, que levaram o STF a contrariar sua jurisprudência e julgar o processo conjuntamente no STF. Interessante que, quando ficou claro que haveria condenação, o Levandowski tentou reverter o voto que ele próprio puxou.
    O tema é polêmico, pois em geral as torcidas estão envolvidas. Eu assisti aos julgamentos e tentei ser isento o tempo todo. Achei que o Joaquim Barbosa foi parcial e, muitas vezes, pouco técnico em seu julgamento. Mas o caminho que tomou é extremamente difícil. Desafiar o Governo Federal e a principal elite partidária do Brasil não é tarefa fácil. Todo dia era atacado pelo Nassif, 247, Carta Capital, PHA e demais blogs. Isso cria uma animosidade que pode até acabar em agressão, como quase acabou mesmo. Por isso, mantenho a opinião de que coragem é uma característica que identifiquei no JB.
    Agradeço seu comentário aqui em nossa pequena Ágora.

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