O segundo turno das eleições tem acirrado o ânimo das pessoas, em especial nas redes sociais. Informações são reproduzidas com muito pouco zelo: “o partido A é dez vezes mais corrupto do que o partido B”; “o candidato A é contra o 13º salário”; “o trensalão e a privataria”; “o mensalão e o petrolão”. E segue por aí a discussão, recheada de ofensas.
O excesso de informação deste momento dificilmente auxilia na decisão do voto. Arquíloco deixou, há alguns milênios, um aforismo bastante enigmático: a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante. Hoje este aforismo é lido – principalmente após Isaiah Berlin – como a diferença dos que têm a capacidade de agregar o conhecimento, criando um eixo unindo os saberes (tal como o ouriço do aforismo, que sabe uma coisa muito importante), em oposição às raposas, que são pluralistas, lidando com a realidade sem precisar unificá-la numa raiz comum.
Utilizando a arquitetura proposta por Arquíloco, o segundo turno é das raposas. Em meio a tal confusão, a busca da verdade torna-se, na maior parte das vezes, uma perda de tempo. Poucos têm o espírito ou a disposição para conferir dados, checar fontes, considerar a opinião alheia e refletir silenciosamente. Agora, parodiando os pré-socráticos, tudo é movimento.
Por outro lado, aqueles seres agregadores (ouriços), que supostamente detém a verdade, nunca conseguiram vencer a opinião (doxa) com o singelo argumento de autoridade. A literatura da Antiguidade está repleta de exemplos desses casos de insucesso. A alegoria da caverna é minha referência básica neste assunto. Já tratei dela em outros posts. Os aporéticos já devem estar até cansados dela. Nela, o filósofo, a quem foi dado conhecer a verdade, conta aos habitantes da caverna sua experiência. Ninguém acredita nele. Apesar de ele deter o conhecimento obtido a partir de um ângulo muito mais amplo do que os habitantes da caverna, sua verdade é confundida com uma opinião.
De certo modo, Platão utilizou, com essa alegoria, o argumento de autoridade. Para ele, principalmente após a morte de Sócrates, não poderia haver regime melhor do que uma ditadura de filósofos, pois só esses conhecem a verdade. Com o Moisés bíblico, apesar de notáveis nuances, a história se repete. Ao trazer as tábuas com os mandamentos (verdade), a multidão que não está pronta para ela. E é Moisés (o ouriço) que cuida de destruir as tábuas. Novamente tem-se a imagem de alguém sábio, conhecedor da verdade, que desce à montanha para sua revelação, mas o povo (demos) não está em condições de recebê-la.
Nietzsche, com um olho na tradição e outro em sua desconstrução, cria seu Zaratustra, que também desce da montanha onde viveu retirado do mundo por 20 anos e encontra um público arredio e cético. A referência à Platão e ao Velho Testamento é evidente, mas é a pilhéria a essas referências que interessa à Nietzsche. No mundo de Zaratustra, esses velhos sábios já não têm lugar. A verdade não existe e Deus está morto. Há saídas, mas não pelos velhos caminhos.
Se o conhecimento não pode ser estruturado (lembro que Nietzsche, em determinado momento, crítico que era da dialética, chegou propor que só se poderia filosofar por aforismos), pode ser desgastante para o ouriço viver neste mundo de milhões de vozes.
Um dos maiores romances do século XX é a Montanha Mágica, de Thomas Mann, autor preferido desta Ágora. Nele, Hans Castorp, legítimo representante do início do século passado, resolveu refugiar-se em um sanatório suíço, visto que talvez fosse tísico, fato não confirmado ao longo do livro. Aqui a metáfora é invertida: sem se adaptar à vida prática e conhecendo muito pouco do mundo, o jovem personagem do livro sobe a montanha. Lá do alto, ouvia as histórias, presenciava os debates, dava suas opiniões, mas se sabia ausente do mundo. Talvez por sua incapacidade de agregar o conhecimento, preferiu ausentar-se dos embates diários exigidos pela vida, vivendo na representação do mundo das ideias (essa interpretação é bem particular, não é a corrente sobre o livro).
Ainda assim, dispunha-se a fomentar o debate com as figuras típicas da esquerda e da direita da época, ora tendendo para um lado, ora tendendo para outro, com a irresponsabilidade típica de quem não está participando, de fato, da vida pública. Esse distanciamento parecia-lhe ora vazio, ora enriquecedor. Mas faltava-lhe disposição (ou coragem) para descer a montanha.
A trama de a Montanha Mágica deságua na Primeira Grande Guerra. O segundo turno das eleições também se assemelha a uma guerra. Como disse Ésquilo, na guerra, a verdade é a primeira vítima. Se já não é confortável para o ouriço viver em um mundo repleto de opiniões, tempos de guerra não facilitam.
No momento, seguirei acompanhando com muito interesse os debates e as notícias, com os ouvidos atentos e os olhos ariscos. Quem sabe, tal como Hans Castorp no final de A Montanha Mágica, eu não resolvo, mais à frente, descer a montanha e participar desses violentos embates. Por enquanto sigo na montanha, de onde tenho vista privilegiada.
Gustavo Theodoro