Colaboracionismo

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“Submissão” é um dos livros mais badalados do ano. Escrito pelo polêmico romancista Michel Houellebecq, o livro retrata uma distopia futurista – mas nem tanto, pois os fatos se passariam em 2017 – em que uma “fraternidade muçulmana” venceria apertada eleição e iniciaria um processo de conversão da França ao Islã.

Ainda que eu considere a transição muito rápida e inverossímil, o livro provoca um grande mal-estar ao nos revelar a fragilidade de nossos sistemas democráticos e mesmo de nossa civilização, particularmente com o atual estado de espírito dominante no mundo ocidental.

Habita pouca fé no homem contemporâneo. A escola da dúvida fundada por Descartes levou o homem em buscar substitutos para a “decadente” religião. A ciência, o progresso, a liberdade e alguns outros conceitos abstratos ocuparam esse vazio. Mas foi o marxismo que parecia mais bem equipado para servir como alternativa para eterna sede da humanidade por “algo mais”.

Pois o marxismo vê o mundo capitalista como um período de sofrimentos que culminará em um regime solidário, igualitário, sem chefes nem patrões e sem exploração do homem pelo homem. Muitas religiões adotam o mesmo ponto de vista, buscando dar conforto aos que sofrem no presente com a promessa de uma compensação futura.

Com a derrocada do marxismo, do leninismo, do trotskismo e, mais recentemente, do brizolismo, do malufismo e do petismo, adentramos em uma época de profundo niilismo, em que só o consumismo, o egoísmo e o hedonismo parecem prevalecer.

Enquanto o marxismo e as demais ideologias até conseguiam se portar como substitutos à altura da religião, a mais recente família de “ismos” só trouxe à humanidade mais insatisfação e infelicidade. A satisfação da compra não dura uma hora. A beleza ou a saúde são sempre frágeis, precárias, e tendem a se degradar com o tempo. Não há perspectivas de se ter “uma boa vida” com esses valores.

Para os marxistas, o homem contemporâneo não tem alma. É o típico apolíneo, despido da coragem essencial. Foi Slavoj Zizek quem recentemente reproduziu passagem de Nietzsche para descrever o homem que vive em uma sociedade liberal ocidental. Segue abaixo:

Tendes coragem, ó meus irmãos? Sois ousados? Não a coragem que se tem diante de testemunhas, mas a coragem do solitário e da águia, de quem nenhum deus já é o espectador. As almas frias, as mulas, os cegos, os homens embriagados, não têm o que eu chamo de coração. Tem coração aquele que conhece o medo, mas o domina, aquele que vê o abismo, mas altivamente. Aquele que vê o abismo, mas com olhos de águia – aquele que agarra o abismo com garras de águia: esse é o corajoso.

Os marxistas estão em baixa. Mas seguem se interessando pelos melhores autores. De alguma forma, esse homem niilista e hedonista, fraco e apolíneo, parece, em contrapartida, mais domesticável, estando, portanto, mais disposto a cometer o mal banal de que tanto tratou Hannah Arendt. É nesse sentido que o livro de Houellebecq parece mais realista. Pois não é a submissão o traço mais dominante da sociedade ocidental, mas sim o colaboracionismo. Nesse sentido, há requintes de crueldade no tratamento do autor à situação atual da França, pois a experiência do século passado fez com que aquele país tentasse, a todo momento, reescrever seu passado.

Ao invés de retratar a hegemônica colaboração dos franceses com os Nazistas, foram as histórias da minguada resistência francesa que até hoje prevaleceram. A distopia de Houellebecq parece indicar que estamos tão ou mais suscetíveis ao mal banal do que já estivemos no passado. Não que a Irmandade Muçulmana represente, de alguma forma, o mal. Mas o retorno a um estado religioso, com renúncia a nossas liberdades essenciais, de alguma forma abre as possibilidades de retorno a qualquer cenário pior do que o atual. Pois esse homem contemporâneo, hedonista e consumista, parece revelar características pusilânimes em grau superior aos antigos. E o editorial de ontem da Folha de São Paulo viu semelhanças entre o fenômeno contemporâneo brasileiro, com uma aparente volta de teses conservadoras de raiz fundamentalista, e a distopia apresentada pelo livro de Houellebecq.

É certo que generalizações tendem a ser repletas de imprecisões. Para muitos, falar em “homem moderno” não passa de rematada bobagem. Além disso, há autores, como Steve Pinker, que demonstram com riqueza de dados que a maldade, os assassinatos e os crimes parecem estar diminuindo com o passar do tempo em todo o mundo. Sem a presença marcante do mal absoluto, será que podemos falar de uma tendência de aumento do colaboracionismo, do mal banal e da submissão? Não sei. Parecemos estar no meio de uma caminhada e o horizonte ainda está indistinguível. O que nos resta é refletir enquanto estamos vivendo. E reconhecer que O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ainda é a distopia que mais bem conseguiu antever o futuro da humanidade.

Gustavo Theodoro

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