O Silêncio dos Intelectuais

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Umberto Eco declarou recentemente que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. A fala causou polêmica e, paradoxalmente, gerou muita discussão nas próprias redes sociais. Alguns dos imbecis de Eco o defenderam, outros o atacaram. O termo utilizado pelo romancista teve por efeito jogar sombra sobre uma importante questão de fundo que surge desse debate: a pouca relevância dos intelectuais no debate contemporâneo.

É fato que muito já foi dito sobre o assunto, principalmente no Brasil, pois quando o PT foi eleito a crítica acadêmica dirigida ao Governo Central praticamente cessou. Foram realizadas palestras e publicados livros com o sugestivo título de “o silêncio dos intelectuais”. Para muitos era um fenômeno localizado, decorrente da preferência dos meios universitários pela esquerda, principalmente em decorrência dos anos de ditadura militar.

A redemocratização não foi muito generosa com o País. Eleito Tancredo, assumiu Sarney com seu populismo atrasado. Na radicalizada eleição de 1989, venceu Collor, o caçador de marajás, cassado quando sua popularidade ruiu. Itamar fez um governo de transição. FHC assumiu com ares de príncipe, fez algumas reformas estruturais importantes, mas a âncora cambial do primeiro mandato acabou definindo o segundo. As privatizações deram-lhe a pecha de neoliberal, que me parece injusta. O certo é que o PT representava o primeiro governo realmente de esquerda no período que se seguiu à ditadura.

Os intelectuais, a maioria de esquerda, deixaram de ter relevância no debate que se estabeleceu a partir de então. Seja por tática, para evitar a volta da direita, seja por dificuldade de lidar com a realidade, visto que o discurso pragmático, da “Realpolitik”, parecia ter se imposto. Essa circunstância local nos impediu de perceber que a perda de relevância dos intelectuais era fenômeno global e não resultava apenas desse alinhamento ideológico.

Nunca é demais lembrar que alguns dos melhores filósofos do século XX cometeram erros brutais de análise da realidade. Heidegger apoiou o Nazismo, ou pelo menos demonstrou simpatia pelo regime. Sartre apoiou Stalin, mesmo depois dos processos forjados, e apoiou Mao, em plena “revolução cultural”.

Desde Kant os pensadores universais foram se escasseando. Raros foram os pensamentos e as ideias realmente globais. Essa ausência de absolutos foi prevista por Nietzsche; mas a consequência disso não. Se não se podia recorrer a princípios generalizantes, será que nosso tempo ainda poderia dar relevância aos intelectuais?

Em 1953, Albert Camus revelou esse desconforto. E lançou aos existencialistas a questão: mas será que estávamos certos quando deixamos de buscar conceitos absolutos do bem e do mal? Será que não deveríamos voltar a isso? Sartre desdenhou dessa tentativa, com razão, pois a filosofia não cabia mais em princípios absolutos. Mas a preocupação com o bem deveria habitar a cabeça de cada pensador do mundo, ainda que se tivesse por certo que a tarefa era irrealizável. Camus não era filósofo, não tinha a bagagem de Sartre, mas ainda assim quase sempre esteve mais próximo da verdade do que ele. De todo modo, com o fim da metafísica, com o fim dos absolutos, a verdade se esvaneceu.

A perda da relevância dos intelectuais aliado às modernas possibilidades de comunicação, em que a opinião de especialistas pouco de distingue da voz dos imbecis de Umberto Eco, produziram um mundo muito mais aberto, mas mais perigoso. Temos mais acesso às verdades, mas nos é mais difícil distingui-las. Lembro que os gregos tinham desprezo acintoso pela opinião (doxa), pois ela nos afastava da verdade (aletheia). Ainda que até o conceito de verdade seja objeto de relativização, o preconceito dos gregos revela-se, ainda hoje, muito atual.

Nesse cenário, nossa capacidade de julgar se torna ainda mais relevante e deve ser treinada e exercida diariamente. Para os juristas, julgar é um ato de vontade. Para Kant, é algo inato do ser humano e, muitas vezes, depende muito pouco do raciocínio (tanto que chamou sua crítica ao juízo de crítica ao gosto, se referindo mesmo ao paladar). Em um mundo relativo, essa habilidade deve ser desenvolvida. Pois é a partir do julgamento que são feitas as escolhas importantes de nossa vida: quem são nossos amigos, quais serão nossas condutas, o que deve ser lido, isso tudo deve decorrer sim de escolhas que fazemos a partir de nossos julgamentos.

Os intelectuais não estão em silêncio. É sua importância que foi reduzida. Cabe a cada um de nós desenvolver o senso crítico, desenvolver a capacidade de duvidar e de julgar, para selecionarmos o que vale a pena continuar lendo nessa selva de opiniões em que vivemos. Deixar as redes sociais não é opção. Mas fazer uma boa seleção do que será lido torna-se fundamental. Pois dificilmente teremos um mentor ou um guia que represente exatamente o que pensamos. A perda de relevância dos intelectuais nos coloca a missão ser sermos autônomos e pensarmos por nós mesmos, como ensinava Kant. Nem todos querem esse trabalho, mas os que se dispensam dessa tarefa podem acabar fazendo parte de uma legião de imbecis.

Gustavo Theodoro

5 comentários

  1. Opinião e Verdade continuam sendo coisas distintas. E ainda bem. Cabe a nós fazermos esta distinção no meio de tanto falatório. Concordo com o articulista quando diz: “Nem todos querem esse trabalho, mas os que se dispensam dessa tarefa podem acabar fazendo parte de uma legião de imbecis..”.
    Gostei muito do ponto de vista expressado.
    Um grande abraço!

  2. Caro Gustavo:
    Também repercuti em meu blog a opinião de Umberto Eco sobre os “imbecis”. Entendi a ideia dele. Um dos argumentos que expôs em entrevista à revista Veja é bem simples: se há sete bilhões de pessoas no mundo, certamente há um número muito grande de “imbecis”. Se a net dá espaço a “todos”, entre estes haverá obviamente muitos daqueles. Mas o italiano deu relevância àquilo que você destacou como fundamental: aumentar o poder crítico sobre o que é visto na net. Disse ele: “A primeira disciplina a ser ministrada nas escolas deveria ser sobre como usar a internet: como analisar as informações.”
    Talvez, mais do que um silêncio dos intelectuais, o que esteja ocorrendo com o pensamento deles seja uma “diluição” entre os diversos “opinadores” da net. Neste “mar”, temos que saber procurá-los. Fora este fato, concordo com você de que os intelectuais não estão calados. Há produção de textos com suas ideias. Porém, em certa medida, acho que há o que você apontou em relação ao Brasil se replicando pelo mundo: o capitalismo, com todos os seus problemas, saiu “vitorioso”. Reformas são necessárias? Acho que sim. E se os intelectuais não apontam estas reformas, pelo menos mostram que não estamos num paraíso; há questões de injustiça social a serem resolvidas, sim! Tomar consciência disso já é um primeiro passo.
    Outro ponto sobre o qual eu gostaria de falar é o do “bem” e da “verdade”.
    Independente do reconhecimento de não haver “bem” e “verdade” absolutos – talvez, este adjetivo não devesse estar sendo aplicado ao substantivo “verdade”, como faço, visto que uma “verdade relativa” poderia não merecer o título de “verdade” -, penso que há “bens” e “verdades” que são menos disputáveis que outros. Reconhecendo isto, podemos nos afastar de opiniões “menos válidas” e de bens “menos valorosos”, em função de sua substituição por outras posições “melhores” – ainda que não “absolutas”, que podem ser tomadas apenas como referências “ideais”. Acho que essa tarefa de buscar os “bens” e “verdades” locais e temporais, digamos assim, é o que realmente importa.
    Grande abraço,
    Ricardo.

  3. Ricardo, concordo com você. Há um vídeo bem ilustrativo no youtube do autor de Justice, de Michael Sandel. Se tiver tempo, dê uma olhada em : https://www.youtube.com/watch?v=EC5rEhbH-fI.
    Você verá que, mesmo sem conhecer Kant ou Rawls, qualquer aluno de primeiro ano sabe diferenciar o certo do errado, o bem do mal, e coisas assim. Isso nos dá uma esperança de que, apesar de não termos mais como ter certeza da existência dos absolutos, a maioria consegue perceber o caminho correto, a aproximação com a verdade, e coisas assim. Esse assunto é dos que mais me interessam. Um abraço.

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