Sobre o Tempo

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O ser humano mistura-se e distrai-se para não dar de cara com ele mesmo. A psiquiatria trata por pânico ou ansiedade generalizada a preocupação exagerada quanto ao futuro, e depressão a preocupação com o passado.

Há uma fábula da antiguidade, atribuída a Higino, utilizada por Heidegger, que parte da preocupação para, em algum momento, vincular o Ser ao tempo:

 Quando certa vez a Preocupação atravessou o rio, viu um terreno argiloso. Refletindo, pegou um pedalo dele e começou a formá-lo. Enquanto refletia sobre o que estava criando, Júpiter aparece. A Preocupação pede-lhe que confira espírito à argila formada. Júpiter lhe concede isso com prazer. Mas quando ela quis dar seu nome à figura, Júpiter proibiu e pediu que lhe desse o nome dele. Enquanto Júpiter e a Preocupação brigam por causa do nome dela, também a Terra se manifestou e quis que a figura tivesse nome dela, pois afinal ela lhe dera um pedaço de seu próprio corpo. Os litigantes chamaram Saturno como juiz. E Saturno deu-lhes a seguinte decisão aparentemente justa: Tu, Júpiter, porque lhe deste o espírito, terás o seu espírito depois da morte; tu, Terra, que lhe deste o corpo, receberás seu corpo. Mas porque a Preocupação formou essa figura antes das demais, enquanto ela viver será propriedade da Preocupação.

Preocupação, para Heidegger, relaciona-se com a atividade de prever e planejar. É a finitude da vida – e a consciência dela – que nos coloca diante das preocupações. Apesar do belo e difícil capítulo sobre a morte presente em Ser e Tempo, a preocupação não se relaciona com o medo da morte; se está relacionado ao medo de algo, trata-se de medo da vida.

Esses pensamentos foram propagados por vários pensadores dos anos 1920. Mas Heidegger sempre negou que sua doutrina tivesse algo relacionado com a crítica da vida de seu tempo. Em dizer mais erudito, suas preocupações eram ontológicas, e não ônticas.

Seguindo a esteira do pensamento disposta em Ser e Tempo, o ente seria naturalmente disposto a alguma coisa. Para Heidegger, essa disposição é tratada por ele como uma impropriedade. É na indisposição que surgem o fastio e o tédio. No que ele conclui que o ser evidenciou-se um ônus. Assim, as distrações se tornam “necessárias”, como uma fuga do tédio e do medo, que aproximariam o ser dele mesmo.

Tal como a transformação kafkiana em Metamorfose que trata de nossa inadequação para a vida, Heidegger busca revelar que, se a vida das distrações é repleta de preocupações, a vida do ente voltado para ele próprio também é repleta desse sentimento de inadequação.

A não-adaptabilidade poderia reduzir as chances de sobrevivência biológica de nossa espécie. Por isso o ser humano age de acordo com o princípio do alívio. Assim, ele passa a evitar aquilo que, para os filósofos, seria a essência da dignidade humana: a espontaneidade, a reflexibilidade e a liberdade.

Com o tempo o ser humano cai no inevitável e deixa que a civilização alivie o peso do ser. Nesse sentido, é Robert Musil (citado por Rüdiger Safranski), que conclui: “é preciso valorizar quando um homem ainda tem o desejo de ser algo inteiro”.

Heidegger suspeita que o alívio seja uma manobra de fuga, uma impropriedade. O propriamente herói carrega como Atlas o peso do mundo em suas costas. Aqui se antevê a crítica à massificação, à urbanização e a indústria da diversão, tão presente nos tempos de Weimar. Nessa vida cada um é outro e ninguém é ele mesmo.

Saindo de Ser e Tempo e voltando às palestras do tempo de Freiburg, em 1929, Heidegger deixa seus conceitos um pouco mais claros. É no momento do medo que as dissimulações se quebram. A filosofia só começaria de fato quando temos a coragem de deixar o nada acontecer. É impossível ler Heidegger e não pensar em Nietzsche, que lançou o mesmo desafio, de olhar de forma arregalada para o abismo em busca do Ser. E de Platão, que levou seu filósofo para além das fronteiras do visível em busca da verdade, o tirando da caverna, do mundo de sombras.

Heidegger deu importantes passos em sua filosofia. Infelizmente a leitura de sua filosofia é incognoscível para a maioria das pessoas. É importante considerar que, ao contrário de Nietzsche, Heidegger jamais pode ser tomado como guia de vida. Suas análises são desinteressadas e, em certo momento, – de forma surpreendente – é feita uma inversão em que o ser impróprio passa a ser mais natural do que o próprio, na linguagem de Heidegger. Ou seja, a vida de distrações passa a ser a natural. Antes de conselhos úteis para a vida, sua filosofia trata de refletir sobre o que nos constitui sem necessariamente chegar a um desfecho. Trata-se de filosofia de alta qualidade.

Recomendo aos aporéticos que chegaram ao final deste texto que deixem, neste momento, as preocupações de lado, ainda que nossa vida pertença a elas. Sabemos que nossa dívida é apenas com a Terra, que terá de volta nosso corpo, e com Júpiter, a quem devolveremos nosso espírito. Enquanto esse momento não chega, desejo a todos um feliz ano novo, pois o tempo e sua passagem é também tema desse artigo. E se estamos preocupados com algo, isso é sinal apenas de que estamos vivos. Feliz 2016.

Gustavo Theodoro

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