Polícia Civil

Aécio e o Choque de Gestão IV

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Nas semanas anteriores fiz uma revisão das pesquisas mais modernas publicadas sobre indicadores, metas e remuneração variável. A maioria das informações aqui disponibilizadas foram extraídas da tese de mestrado de Luis Otávio Milagres de Assis, que realizou a pesquisa que será analisada a partir de hoje.

A administração pública brasileira tem tradição cartorial; seus dirigentes, em geral, são autocráticos e prezam em demasia pela hierarquia. Em parte por isso, os indicadores quase nunca são adequadamente produzidos.

No entanto, na Polícia Civil mineira a consultoria contratada tentou aplicar o manual dessas técnicas e o trabalho começou com envolvimento considerável dos servidores daquela organização. Apesar disso, na aplicação do sistema de indicadores, essas características negativas – como o excessivo apego à hierarquia – ressurgem. Na Polícia Militar, estrutura hierárquica por definição, já na construção dos indicadores foi possível perceber a resistência da organização em horizontalizar decisões. Neste artigo, no entanto, serão analisados apenas os resultados obtidos pela Polícia Civil.

Um dos indicadores criados afere o número de inquéritos executados por Delegacia. Caso o indicador tivesse por objetivo o aprendizado da organização, o número seria medido e o grupo que elaborou o indicador teria a incumbência de entender o resultado e propor alterações que pudessem tornar o serviço mais eficiente e produtivo. No entanto, o choque de gestão mineiro não tinha esse objetivo. Na visão de quem implantou o choque, as metas aliadas aos prêmios de produtividade cumpririam a função de motivar os servidores.

Foi estabelecida uma meta de 17 inquéritos por Delegacia. Como já aprendemos, trata-se de um indicador de atividade, que mede o produto (inquérito) e não o resultado (redução da criminalidade ou algo do gênero).

Os resultados foram decepcionantes. Os gráficos produzidos revelaram que, entre 2008 e 2011, nenhum ganho de produtividade foi observado. O que se notou é que as Delegacias que estavam um pouco abaixo da meta começaram a atingir as metas. E as Delegacias que já cumpriam ou ultrapassavam as metas tiveram sua produtividade mantida ou reduzida para o número de 17 processos. São efeitos previsíveis para quem conhece os mecanismos do gaming.

Logo após o estabelecimento da meta, mas antes de ela começar a vigorar, houve crescimento no número de inquéritos produzidos. Segundo avaliação da própria Polícia Civil, inquéritos velhos, podres, que só ficavam indo e voltando ao MP foram encerrados para que o início do sistema se desse em outro patamar. No entanto, este incremento que houve nos três primeiros meses não se manteve.

Espera-se que a produtividade seja bem representada por uma gaussiana, com a maioria produzindo ao redor da média. Pois na Polícia Civil mineira a curva se estreitou: os que produziam mais passaram a produzir menos e os que produziam menos passaram a produzir mais. Isto se explica pelo gaming, ou seja, os Delegados passaram a jogar o jogo dos números.

Se a meta do mês havia sido atingida, os novos inquéritos – mesmo os prontos – eram deixados para o período seguinte. Além disso, a própria apuração do crime começou a mudar. Em um crime que envolvesse gangues, por exemplo, diante da ocorrência de assassinato, o objetivo era encontrar aquele que puxou o gatilho, sem procurar investigar toda a gangue e os motivos do crime (geralmente tráfico de drogas). Ou seja, os indicadores incentivaram a solução parcial do crime, o que não contribuiu, no longo prazo, para a redução da criminalidade.

Um Delegado Geral do Núcleo Estratégico de Minas fez a seguinte avaliação do ocorrido:

Do ponto de vista da qualidade, não tenho dúvidas, houve um decréscimo da qualidade. Porque se prioriza a quantidade, não se prioriza a qualidade. E essa quantidade, você tem condições de influir sobre ela: você pode relatar os inquéritos mais fáceis de serem relatados e concluir os inquéritos mais fáceis de serem concluídos. Os mais complexos, que incidem sobre crimes mais complexos, de maior significado, esses vão ficando para trás. Esse é o efeito perverso.

Outro Delegado, chefe de departamento, que trabalhava além da conta, nos finais de semana e à noite, começou a ficar para trás. Ele fez a seguinte declaração após vivenciar cinco anos de trabalho com indicadores e de perceber a produtividade alheia muito superior a sua:

Eu era responsável pela área x na Polícia Civil, eu era quem mais produzia em número de inquéritos. Depois chegou outro delegado e produziu um número muito maior do que o meu. Eu fiquei sem entender como ele conseguiu aquilo, porque eu trabalhava sábado, domingo, feriado, de noite…. mas é um ritmo meu… aí pensei… não pode! Mágica não existe. Aí eu fui descobrir. Os meus relatórios tinham  conteúdo, o dele não. O relatório dele eram três parágrafos, sem entrar em mérito, sem entrar numa pesquisa de jurisprudência, sem fazer uma pesquisa doutrinária, mas aí é fácil, baixa tudo. Ou seja, era aquela coisa sem compromisso, talvez algo que possa significar piora no resultado… Então, a pessoa não quer compromisso. Hoje se trabalha estatística, número, número… e não está se aferindo qualidade.

Várias outras doenças próprias da instituição de indicadores foram verificadas. Houve diversos casos de Delegados pedindo arquivamento do inquérito sem que nenhuma diligência fosse realizada. Além disso, como a estrutura da Polícia Civil era muito hierarquizada, a ordem era para cumprir a meta a qualquer custo. Isto acabou forçando os Delegados a priorizarem casos de mais fácil solução – furto com um único envolvido –, por exemplo, diante de casos de maior complexidade.

Como vimos, apesar da aparente modernidade dos indicadores – que, repita-se, são necessários, mas precisam ser mais bem estudados -, os resultados de sua utilização na Polícia Civil mineira não foram animadores. O principal indicador criado media a atividade e não o impacto do trabalho da organização, o que contribuiu para o baixo resultado observado. Além disso, o indicador e a meta favoreciam o gaming. A implantação do indicador teve como efeito colateral reduzir a produtividade dos melhores funcionários além de tirar o foco dos reais objetivos da organização, que passou a dar preferência à solução de crimes mais simples, praticados por menor número de delinquentes e, pior, muitas vezes de menor potencial ofensivo para a sociedade.

No próximo post será analisada a introdução dos indicadores em uma instituição ainda mais hierarquizada: a Polícia Militar.

Gustavo Theodoro