Ao mesmo em que se transformou em best seller mundial, o livro de Piketty é visto com desconfiança nas escolas de economia. Isto porque Piketty fez uma estranha mistura de análise numérica, teoria econômica, tese social e narrativa histórica. Os livros de economia, em geral, são menos ambiciosos e, consequentemente, menos abrangentes – e, com ironia, mais precisos). Poucos se arriscam a abordar um tema tão difícil como a desigualdade utilizando método próprio e abrangendo período de tempo superior a cem anos.
Aquilo que torna o livro atraente é, ao mesmo tempo, o seu ponto fraco. A narrativa histórica da economia é extremamente envolvente, porém implica os mesmos juízos a que estão submetidos os historiadores. A ciência histórica apropriou-se dos métodos científicos, mas nem por isso tornou-se mais precisa. Enquanto as ciências naturais recuaram e reconheceram suas limitações no século XX, as ciências histórias adquiriram súbita confiança e passaram a se atribuir características de infalibilidade científica, justamente por utilizar o método que a ciência reconheceu limitado em seus experimentos.
Foi Hegel que buscou salvar a filosofia por meio da história. Marx apropriou-se do discurso hegeliano para dar um sentido para a história. Interessante observar que Sócrates buscava aproximar da verdade cada interlocutor seu. Conhece-te a ti mesmo (gnothe seuton) é o mandamento do Templo de Delfos. A verdade seria obtida por meio da maiêutica, que tem o significado de dar à luz, sendo seu método a parteira da verdade. Marx se apoiou em Hegel para, atualizando a filosofia aos tempos da revolução industrial, dizer que a violência é a parteira da história. É evidente que Marx conhecia Platão e pensava saber o que estava fazendo.
Para Marx, a história transformou-se na nova metafísica e a política transformou-se em atividade acessória para que um fim pudesse ser construído. A ideia de que um novo mundo é possível nasceu naquele momento.
Piketty é herdeiro dessa tradição. Seu livro é exemplo pronto e acabado disso. Para ele, a história fornece argumentos irresistíveis para a ciência econômica. E são essas as premissas que o levam ao cometimento de erros tão facilmente observáveis.
Logo no início de seu livro, Piketty levanta uma curva demonstrando que a desigualdade teve valor significativamente grande nos primeiros anos do século XX, caiu muito a partir da Primeira Guerra e assim se manteve até o fim da recuperação europeia da Segunda Guerra, quando voltou a crescer. Ainda não atingimos o pico de 1914, mas Piketty quer nos convencer que chegaremos lá se não fizermos nada.
São muitas as cautelas que devemos tomar com o livro de Piketty. O próprio autor faz diversas ressalvas a respeito do cálculo do PIB feito há mais de cinquenta anos. Assim, a própria série histórica de Piketty deve ser vista com bastante ponderação.
A principal fórmula de Piketty, que relaciona renda do capital ao crescimento do PIB, apresenta muitos problemas. Para Piketty, sempre que a renda de capital for superior ao crescimento do PIB estaremos produzindo desigualdade. Se esse enunciado for verdadeiro, o Brasil atual está gerando desigualdade, pois a taxa de retorno do capital está em torno dos 6%, enquanto o PIB, bem, não vamos falar de PIB, não é mesmo?
Há ainda uma excessiva preocupação com a transmissão das fortunas por herança, que significariam um atentado à meritocracia. Mas muito pouco é comentado sobre a mudança radical no perfil populacional, particularmente nos países europeus, onde casais apresentam baixíssima taxas de fertilidade. Além disso, a simples listagem dos mais ricos do mundo já nos dá notícia de que menos de 20% dessas fortunas decorrem de herança. Bill Gates, Mark Zuckeberg e Carlos Slim não me deixam mentir.
A tendência verificada em seus gráficos é de curto prazo, algo em torno de 20 anos, sendo que sua análise abrange mais de dois séculos. E a desigualdade atual, mesmo pelo método de Piketty, não é maior do que era no início do século XX.
São muitos os questionamentos ao livro de Piketty. Mesmo assim, é um livro intrigante e que merece ser lido. Só não precisamos desenterrar Marx e passar a considerar que só no passado éramos iguais e felizes. Retoma a mais que precisa frase de Camus, que nos lembra que os únicos paraísos são aqueles que perdemos. É a nostalgia que edulcora nosso passado.
Gustavo Theodoro