Da Revolução

foto O Pensador

Nunca fui extremista. Quando jovem, era moderado em meus alinhamentos políticos. Apesar de ter lido Marx e Engels na adolescência, nunca me vi como um revolucionário. Tive muitos amigos que queriam mudar a realidade com um só golpe, com uma revolução, com a tomada de poder. Talvez George Orwell e sua Revolução dos Bichos tenha me imunizado quanto à fé nas revoluções.

Lembro-me de uma conversa que tive há mais de vinte anos com um amigo historiador e marxista. Conversávamos sobre Hannah Arendt, que eu havia descoberto poucos anos antes. Ele me disse: “é uma pensadora muito interessante; mas não defende a revolução”. Achei interessante o adversativo inserido na frase. Para maioria dos marxistas do século passado – exceto os que seguiam a linha de Gramsci -, só a revolução seria capaz de construir uma nova sociedade.

Acredito que Hannah Arendt tornou-se reformista após a leitura de Tocqueville, grande estudioso das revoluções francesa e americana. Tocqueville é pensador de difícil enquadramento. Sobre ele já se disse que era demasiado liberal para o partido de onde ele provinha, não muito entusiasta por ideias novas aos olhos dos republicanos, ele não foi adotado nem pela direita nem pela esquerda; ele permaneceu suspeito a todos.

De fato. Edmund Burke, contemporâneo da Revolução Francesa, nos dá a imagem clássica do conservador. Kant não nos remete imediatamente à imagem de um liberal, mas acompanhava o desenrolar da revolução com muito interesse, torcendo pela “maioria silenciosa” que apoiava a revolução.

A leitura da obra de Tocqueville explica as razões da dificuldade de sua classificação. Crítico da democracia representativa (que produzia bons pais de família, mas poucos estadistas), parecia ser saudoso do regime aristocrático. Ao mesmo tempo, era forte defensor das liberdades fundamentais humanas, dentre as quais a liberdade de expressão. Era um analista que se dispunha a fazer o trabalho do historiador, buscar documentos originais e se inteirar verdadeiramente sobre um assunto antes de tomar uma posição.

Apesar de não ter sido contemporâneo da revolução francesa de 1789, foi um de seus maiores estudiosos. Ainda que conhecido por seu liberalismo, Tocqueville fez um julgamento histórico bastante crítico daquele fenômeno revolucionário (que ele expandiu para as demais revoluções).

O objetivo dos revolucionários franceses era construir algo totalmente novo. Para isso, era necessário exterminar – inclusive fisicamente – qualquer resquício do velho regime. A decapitação tornou-se marca da revolução. Os revolucionários assassinaram quase todos os que se relacionavam com o antigo regime, destruíram suas instituições, seus tribunais e o poder local. Terras da Igreja e do Estado foram confiscadas. Depois da terra arrasada, novo regime foi construído.

Para Tocqueville a revolução fez muito pouco dentro da própria França. Se é fato que o mundo absorveu os ideais da revolução francesa, que passou a ser um marco em nossa história, na própria França seus efeitos não teriam sido tão notáveis.

Ao recuperar documentos históricos, Tocqueville percebeu que todas as raízes da França pós-revolucionária tinham sido plantadas no velho regime. A liberdade de expressão, por exemplo, era maior no antigo regime do que sob Napoleão. Tocqueville concluiu, ainda, que o feudalismo praticamente não mais existia nos anos que antecederam a revolução. O poder central já dava as cartas, escolhendo administradores regionais e resolvendo as contendas judiciais. E os efeitos da reforma agrária teriam sido, na prática, muito inferiores do que o que se alardeou sobre o assunto.

Lembra ainda Tocqueville que, aos poucos, o antigo regime foi sendo reconstruído sob Napoleão e os Governos que lhe sucederam. Novo Imperador foi escolhido poucos anos depois da revolução. O poder do clero foi restituído. E boa parte das instituições presentes no antigo regime foram mantidas ou retomadas algum tempo depois. Para cada assunto – tribunais administrativos, poder central, clero, reforma agrária – Tocqueville faz questão de buscar os documentos do antigo regime para demonstrar que pouco avanço se percebeu depois de meio século da revolução.

Se Tocqueville estiver correto em seu julgamento histórico, podemos dar um passo adiante e arriscar que, talvez, a utilização adequada de nossa liberdade de expressão tenha potencialmente maior poder de destruição e construção do que o uso da guilhotina. Por mais que a substituição de governos seja considerada símbolo de mudança, são homens e ideias que acabam por construir algo novo, independentemente de ter havido ou não uma revolução.

A revolução americana se deu com muito pouco sangue derramado, mas ela foi liderada por grandes estadistas que se apoiaram em ideias existentes no momento, quase no mesmo período da revolução francesa. Sem as ideias de liberdade e igualdade que corriam o mundo no momento, uma nação como os EUA não teria sido fundada naquelas bases.

Sim, sem os homens que se dispõe a agir nada se constrói. Mas é de se notar que qualquer tirania que se prese inicia-se não com a prisão dos homens de ação, mas com o cerceamento à liberdade de expressão. Os humoristas, em geral, são os primeiros a serem censurados, pois o riso destrói a autoridade. Depois são os críticos e os analistas. Por último, até as notícias são mutiladas. Ideias movem o mundo e podem fazer mais do que revoluções. Por pensar dessa forma, considero-me um reformista que, por não estar disposto a abandonar minhas convicções, por vezes acabo sendo tratado por radical. E o risco de dar opinião é evidente. Deve ser por isso que Schopenhauer disse que “o verdadeiro filósofo vive perigosa, mas livremente”. Pois é o filósofo, que só pensa, que acaba sendo o artífice da construção de um novo mundo.

Gustavo Theodoro

1 comentário

  1. Caro amigo:
    Já estava sentindo falta dos seus posts. Tanto assim que registrei uma solicitação formal a esse respeito. Rsss.
    Fato é que você retomou em alto estilo. Brindou-nos com um clássico da análise da liberdade, o francês Alexis de Tocqueville. Aliás, antenado como você é, certamente viu que entre os pensadores que foram publicados pela coleção da Folha de S. Paulo apareceu justamente “O Antigo Regime e a Revolução” (1856).
    A não facilidade de enquadrar Tocqueville talvez se deva ao fato de que ele mesmo se declarava “um liberal da nova espécie”. Mas se os liberais têm algumas diferenças com ele, não imagino nenhum socialista podendo usar suas ideias… até porque Tocqueville tomou posição contrária aos “revolucionários”(socialistas) em 1848.
    Embora meu conhecimento sobre Tocqueville tenha que aumentar muito – e considero essa uma grave deficiência minha -, interesso-me muito pela contradição que ele estabelece, no interior da democracia, entre “igualdade” e “liberdade”. Sua ideia de “tirania da maioria” indica, segundo vejo, o maior defeito da “democracia” nos moldes atuais. Um governo manipulador e populista, por exemplo, conseguirá sempre vencer as eleições e impor sua própria vontade – que, na maior parte das vezes, nada tem a ver com aquela do povo – por vários mandatos. Alguma semelhança com nossa condição atual???? Essas vitórias pregando igualdade acabam por diminuir os espaços críticos, onde é possível efetivamente exercer a liberdade individual.
    Parabéns pela escolha do tema do retorno. E acho que Tocqueville ainda tem muito a nos ensinar sobre participação política.
    Grande abraço,
    Ricardo

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