Provas

Lula e o Tríplex

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Interrogatório não se confunde com debate político. Provas contundentes e cabais só existem nos filmes americanos. No mundo judicial prevalece a narrativa que revela maior aderência às provas contidas no processo. Os crimes de colarinho branco raramente são desvendados sem a palavra de algum dos envolvidos. Corrupção é crime que se pratica no escuro, cercado de cuidados, em que se evita telefonemas e transferências bancárias.

As provas foram produzidas, cabe ao Juiz decidir qual narrativa mais bem se coaduna aos depoimentos e documentos obtidos. Lula disse que Marisa comprou uma cota do condomínio em 2005. A Bancoop quebrou, parte dos empreendimentos foi adquirida pela OAS, mas Lula só voltou a tratar do problema, em sua narrativa, no ano de 2013, quando foi visitar a cobertura que nem era aquela pela qual tinha se interessado em 2005. Viu, não gostou, colocou defeitos, e foi embora. Marisa voltou lá alguns meses depois com o filho “só para dizer que não iria ficar com o apartamento” e foi embora. A história de Lula é essa.

Nessa versão, não se sabe por que o casal não tomou nenhuma providência entre 2005 e 2013, enquanto os outros mutuários, em 2009, haviam feito a opção entre ter a devolução do dinheiro ou fazer um complemento do valor pago para ficar com o imóvel. Lula não explica por que um documento com o número do apartamento triplex foi encontrado em sua casa. Tampouco justifica o fato de a cozinha do triplex ter sido comprada na mesma loja da cozinha do sítio de Atibaia, consignando o nome da mesma pessoa na nota fiscal. A narrativa de Lula não explica a razão de o triplex nunca ter sido colocado à venda, assim como não explica o motivo de ter sido feita uma reforma de luxo (no custo de cerca de R$ 1,5 milhão) em um prédio de classe média.

Na versão do MPF, o apartamento estava designado a Lula desde o acerto entre a OAS e a Bancoop. Léo Pinheiro disse que não havia intenção da empresa, face ao seu plano de negócios, de assumir empreendimento que não fosse nas capitais, mas que Vaccari o havia informado que, no prédio do Guarujá, uma das unidades era de Lula. Com a descoberta pelo O Globo, em 2010, de que a cobertura seria de Lula, nenhuma modificação foi feita no imóvel por alguns anos. Em 2013, Lula foi ao apartamento e teria solicitado as melhorias, como o elevador e as intervenções visando à elevação da qualidade dos materiais e revestimentos. Depois Marisa voltou para acompanhar as obras.

Em 2014 o apartamento foi entregue. Era em época de campanha presidencial e, segundo Léo Pinheiro, Lula não queria aparecer lá nesse período, pois a campanha prometia ser muito agressiva, como de fato foi. Mas havia o problema do valor da reforma. Ninguém aparecera para pagar. Léo Pinheiro teria cobrado Vaccari e Okamoto. Ainda segundo Léo Pinheiro, a construtora teria sido ressarcida por meio de propina obtida na Petrobras.

A narrativa do MPF é repleta de indícios e evidências que a corroboram, como as mensagens trocadas, as menções à “madame”, a reserva do apartamento, a personalização, a “coincidência” das cozinhas, os documentos apreendidos, as visitas, sem contar as delações.

Esse cotejamento de narrativas prova, além da dúvida razoável, que só a tese do MPF justifica o conjunto de fatos e indícios trazidos ao processo. Esse é o modo como o Judiciário trabalha e será difícil encontrar prisioneiro condenado no Brasil com mais provas do que há contra o ex-Presidente Lula.

Para muitos, Lula “venceu” o debate contra Moro. Um olhar mais frio de quem assistiu ao depoimento na íntegra revela que Moro nunca pensou estar em um debate. Suas perguntas geralmente procuravam confirmar elementos de cada uma das narrativas e, nesse quesito, Lula foi incapaz de produzir uma história verossímil.

“‘É só um triplex, outros roubam milhões”, dirão alguns. Al Capone foi pego pelo imposto de renda, mesmo com sua longa carreira de crimes; Collor acabou sendo julgado pelo Fiat Elba, apesar das mais diversas acusações de desvio de recursos, contas fantasmas e suas relações com PC Farias. Isso demonstra a dificuldade de se combater tráfico de influência, corrupção e lavagem de dinheiro. Não será pequeno o feito de se obter a condenação de um ex-Presidente por esse tipo de crime. E que a justiça venha para todos.

Gustavo Theodoro

Comandante Máximo

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A cassação de Eduardo Cunha no início da semana significou uma importante vitória para quem defende instituições fortes e o combate sistemático à corrupção. A atuação dos promotores da Lava Jato, que produziram as provas que levaram a esse desfecho, deve ser mais uma vez destacada.

A semana parecia promissora e cumpriu as expectativas. Houve avanços na Operação Zelotes, que cuida da venda de decisões envolvendo o CARF, órgão da Receita Federal responsável pelo julgamento administrativo dos Autos de Infração lavrados; Lula foi denunciado na Lava Jato; Bumlai e os proprietários do Grupo Shahim foram condenados em primeira instância.

Há um movimento de críticas aos promotores da Lava Jato que me pareceu coordenado. No dia seguinte à apresentação de Deltan Dallagnol, os blogs de esquerda inventaram a frase “não temos provas, mas temos convicção”, que virou meme nas redes sociais. Esse movimento não chega a preocupar, pois esse é o comportamento habitual dessa parte da imprensa.

É motivo de preocupação a generalização das críticas contra os promotores. Blogs de direita, jornais impressos e televisivos passaram a considerar a apresentação dos promotores da Lava Jato um ato político, uma vez que não foi apresentada denúncia relativamente à atuação de Lula na Petrobras, apesar de Dallagnol ter se referido a Lula como “comandante máximo do esquema de corrupção”.

A Lava Jato tem muito inimigos. Todos nos lembramos de que Jucá disse que a troca de governo iria “estancar a sangria” que significava a Lava Jato. Delcídio afirmou que José Eduardo Cardozo tentou “sabotar” a Lava Jato. Delcídio tentou levar Cerveró para fora do país e mobilizou até um banqueiro para fazer pagamentos ao ex-Diretor da Petrobras no período de sua prisão.

Portanto, essa nova temporada de críticas à operação deve ser vista com bastante desconfiança. “Juristas” – que geralmente não passam de advogados criminalistas interessados em teses que possam beneficiar seus clientes – ouvidos pelo portal Uol disseram que a denúncia era frágil, pouco técnica e espetacularizada. Reinaldo Azevedo escreveu que o MPF não deveria ter mencionado o fato de Lula ser o “comandante máximo” sem que a respectiva denúncia fosse apresentada. Merval Pereira também criticou os promotores tanto na Globo News quanto em sua coluna no jornal O Globo. Mas afinal, a denúncia era mesmo frágil e pouco técnica?

A confusão estabelecida é perfeita para os comentaristas de má-fé, que escondem interesses inconfessáveis. Percebo, no entanto, que pouco técnica e frágil foi a análise de parte da imprensa.

O enquadramento no crime de lavagem de dinheiro exige a comprovação de que os recursos são “provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Não basta, portanto, que o acusado oculte seu patrimônio. É necessário demonstrar que é conhecida, pelo acusado, a origem criminosa dos recursos ocultados.

A questão do tríplex e do armazenamento parecem estar muito bem fundamentados. Lula e Marisa adquiriram uma cota de apartamento no Edifício Solaris em 2005. Em 2009 a Bancoop, presidida pelo tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, quebrou, deixando prejuízos para mais de 3000 mutuários.

A OAS assumiu uma parte dos empreendimentos. A construtora ofereceu aos mutuários duas alternativas: pediam o ressarcimento de parte dos recursos empregados ou faziam um aporte adicional de dinheiro para que a obra fosse encerrada. Lula e Marisa não tomaram nenhuma providência. Apesar disso, o casal presidencial passou a visitar o apartamento (Marisa e o filho de Lula diversas vezes) e Lula pelo menos uma vez.

O tríplex foi reformado de maneira absolutamente diversa das outras unidades do mesmo edifício. Foi instalado um elevador privativo para transitar entre os andares. A cozinha Kitchens foi contrata pelo mesmo Leo Pinheiro, na mesma loja, para o tríplex de Lula e para seu sítio. Na mudança de Lula em 2011, algumas caixas foram identificadas como “praia” e outras como “sítio”. Funcionários do edifício confirmaram que o tríplex estava sendo reformado para o Lula. Corretores disseram que isso era utilizado como um “diferencial” para a venda do imóvel.

Quando o promotor disse que “não teremos provas cabais de que Lula é o efetivo proprietário no papel do apartamento”, isso só faz reforçar a intenção de ocultar patrimônio, que é uma modalidade do crime de lavagem de dinheiro.

Em 2014 o jornal O Globo revelou a existência do tríplex. Lula poderia ter dito com facilidade o que diz hoje dia: “o apartamento não é meu”. Mas naquele tempo ele ainda não era acompanhado por sua cara banca de advogados. Lula apenas declarou que “o imóvel, adquirido ainda na planta, e pago em prestações ao longo de anos, consta na sua declaração pública de bens como candidato em 2006”. Ou seja, Lula em 2014 reconheceu que o imóvel era dele. Posteriormente, sob recomendação dos advogados é que Lula fez a opção pelo ressarcimento dos valores pagos e só em julho de 2016 entrou na justiça em busca de seus direitos.

O mesmo pode ser dito relativamente à armazenagem de seus bens pessoais. Paulo Okamoto fez orçamento do serviço junto à Granero (cerca de R$ 21 mil por mês) no dia 22 de dezembro de 2010. Cinco dias depois a OAS assinou contrato com a Granero pelo mesmo valor, mas desnaturando seu objeto, modificando-o para “armazenagem de materiais de escritório e mobiliário corporativa de propriedade da construtora OAS”. E arcou com essa despesa de Lula, por meio de um contrato fraudulento. A ocultação da omissão de receitas está cristalina, perfeitamente provada. Restava apenas, para essas acusações, demonstrar o conhecimento de Lula da origem criminosa dos recursos.

A criticada primeira parte da apresentação de Dallagnon visou atingir esse objetivo. Não se tratou de política, mas de exigência do tipo penal. Ou seja, Dallagnon deveria sim descrever de que modo Lula estava envolvido no desvio de recursos da Petrobras, ainda que apenas para demonstrar seu conhecimento de que se tratava de dinheiro de propina.

Isso passou despercebido para muitos, mas acredito que há intenção deliberada por parte de uma parte dos críticos, que buscam constantemente a desmoralização da Lava Jato e do servidor público concursado. Agora que nossas instituições estão funcionando razoavelmente bem, cabe a cada um de nós seguir defendendo o bom andamento das investigações e a imparcial distribuição da justiça. No final é certo que venceremos.

Gustavo Theodoro