Direita e Esquerda IV

                Como havia prometido, passo a tratar dos sintomas de uma doença que contaminou o ambiente político brasileiro, mas que nasceu na Europa do século XX. Havia uma sensação entre nós, logo após a democratização, de que as pessoas boas, bem intencionadas, eram de esquerda, enquanto a direita era bem representada por ditadores, facínoras, empresários inescrupulosos, banqueiros corruptos e por políticos da ARENA. Ao contrário do que pudesse parecer, este não era um fenômeno nacional.

                Com o fim da possibilidade de opor o proletariado à burguesia, novos parâmetros foram postos em seu lugar. Este movimento teve início no século passado, mas segue a todo vapor neste novo milênio.

                O socialismo foi tido por boa parte da intelectualidade europeia do século XX como o representante dos valores humanistas. Ora, quem é contra defender a pobreza, a solidariedade e a igualdade, não é mesmo?

                Mesmo a solução proposta por Bobbio, de certa forma, nos induz a considerar os simpatizantes dos ideais de livre mercado insensíveis às distorções ligadas ao capitalismo, principalmente no que tange a sua característica de gerar desigualdade. Ainda vou analisar mais a fundo estas questões ligadas à igualdade, pois é um dos conceitos que mais sofrem com a guerra política que se estabeleceu nos dias atuais.

                O certo é que o socialismo e a esquerda venceram a batalha de opiniões travada no século XX, mesmo com o capitalismo se mostrando muito mais capaz de produzir riqueza e inovação do que o socialismo.           Isto levou William Harcourt a dizer, no início do século XX, a seguinte frase: somos todos socialistas. Nos anos 1980, poderíamos proferir sentença semelhante aqui no Brasil: éramos todos de esquerda.

O pensamento da época era mais ou menos o seguinte: se os socialistas são humanistas, se são eles os defensores do bem, da solidariedade, da igualdade, quem é contra estes conceitos só pode encarnar o mal radical, o egoísmo, o hedonismo e a ambição desmedida.

                Para agravar o quadro, a esquerda herdou o discurso da divisão da sociedade da Revolução Francesa e da adaptação a esses conceitos feita por Marx no século XIX. Antes do fim do bloco soviético, os socialdemocratas eram os novos representantes da burguesia, o inimigo a ser batido.

O mito do bom selvagem adentrou o espaço político ocidental, o que ajudou a criar toda a sorte de preconceitos contra o homem civilizado e educado. O europeu era prontamente identificado com o opressor imperialista. Esta forma de pensar autorizou Sartre a dizer que abater um europeu é matar dois pássaros com uma só pedra… obtém-se um homem morto e um homem livre. Marx jamais concordaria com tal assertiva.

Nos anos 1970s, vimos surgir com força uma nova esquerda, pautada nas ideias de divisão da sociedade. Vimos o surgimento das doutrinas feministas. Os Panteras Negras e os demais grupos raciais deram nova cara ao movimento negro (que começou de forma legítima e espontânea como movimento de resistência a uma discriminação estatuída por lei). O movimento gay ganhou força nos anos 1980s. Este é o embrião da nova esquerda. Com a queda do comunismo, estas teses marginais de divisão da sociedade assumiram um protagonismo que antes era totalmente ocupado pelas questões econômicas.

A velha crítica de Marx à alienação adentrou neste novo discurso, impedindo que uma mulher seja apenas uma mulher: ela deveria ser, antes de tudo, engajada, ligada aos seus movimentos em defesa da mulher, deveria ser favorável ao aborto e a favor das cotas nas atividades com predominância masculina.

É nesse contexto que os princípios da igualdade e da liberdade passaram por uma releitura, fazendo com que nova ponderação fosse a eles atribuída e criada a obrigatoriedade de que uma pessoa de um grupo social não seja apenas uma pessoa, mas que ele ocupe o papel social das minorias.

De certa forma, esta nova pauta traz consigo a reconfiguração das lutas que mobilizam as pessoas em grupos distintos. E cerceia a liberdade da pessoa enquadrada em algum grupo minoritário sujeito ao ativismo político, não dando a ele possibilidade de se alienar (segundo jargão marxista). Ou seja, se um negro passa a apresentar o Jornal Nacional, ele deve ostentar a defesa da causa negra. Se uma mulher escreve uma coluna em um jornal, ele deve ter as ideias corretas.

Isto lembra-me a velha crítica da esquerda ocidental aos intelectuais que lutavam por liberdade sob a cortina de ferro soviética. Lembro aqui uma declaração de Jan Kavan, diplomata nascido na Inglaterra, mas filho de Tchecos, acerca dessa crítica: “Os meus amigos da Europa Ocidental têm me dito que estamos apenas lutando por liberdade democrático-burguesas. Mas não consigo distinguir entre liberdades capitalistas e socialistas. O que reconheço são as liberdades humanas básica.”

O que resta dessas reflexões é determinar se os direitos das minorias devem se sobrepor aos direitos básicos da pessoa humana, se ainda faz sentido retratar como de direta aquele que luta pelo direito de todos, sem fazer as distinções das pessoas em grupos sociais, tal como nos é cobrado desde a inauguração deste novo fenômeno político e se ainda se justifica a disseminação o preconceito contra as elites, os empresários, os banqueiros, preconceitos esses que foram colocados no lugar dos demais preconceitos observados comumente na sociedade.

Gustavo Theodoro

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