Temos por hábito não diferenciar a atividade de pensar da de julgar. Por isso tendemos a considerar pessoas reconhecidamente inteligentes mais capazes de tomarem decisões acertadas. A ciência têm nos ensinado que esta relação nem sempre é verificada.
Os mais modernos estudos na área de psicologia têm desconcertado os estudiosos ao concluir que as pessoas, mesmo as mais inteligentes, constantemente tomam decisões irracionais. O peso das emoções e do cansaço é muitas vezes superior ao da capacidade intelectiva da pessoa.
A história da humanidade é repleta de exemplos de pessoas indubitavelmente inteligentes que tomaram más decisões. Heidegger, por exemplo, até hoje é considerado um dos maiores filósofos do século XX. Suas aulas atraíam multidões, muitas de suas obras são extremamente abstratas, recebendo mesmo por parte de alguns filósofos o rótulo de impenetrável. Superada a dificuldade, sua obra foi difundida e discutida por toda a Europa, sendo um marco do existencialismo alemão. Ser e Tempo, sua obra mais conhecida, revela um pensador genial, com grau de profundidade poucas vezes experimentado na filosofia. Ainda assim, filiou-se ao Nazismo e era simpático à causa antissemita.
Assim como ele, Sartre tomou diversas decisões questionáveis. Sartre escreveu romances notáveis introduzindo em seu desenvolvimento questionamentos filosóficos de temas como ação e liberdade. Escreveu ainda obras puramente filosóficas, tendo no entanto menos expressão nessa área do que Heidegger, de quem foi contemporâneo. Escreveu ainda uma de minhas peças preferidas, O Diabo e o Bom Deus. Ainda assim fez julgamentos equivocados que o levaram a escrever que abater um europeu é matar dois pássaros com uma só pedra… obtém-se um homem morto e um homem livre. Já sexagenário, continuava defendendo a revolução – mesmo em países democráticos – e apoiou Mao, mesmo quando ele causava milhões de mortos e promovia a execução sistemática de seus inimigos.
Nota-se, portanto, que, ainda que nos consideremos inteligentes – algo de que não podemos ter certeza absoluta -, somos passíveis de tomarmos más decisões. Por isso especialistas no assunto nos indicam que as escolhas mais difíceis devem ser feitas após as refeições e, de preferência, pela manhã. No entanto, podemos aliar essas recomendações simples às lições de Kant sobre o senso comum que bem se aplicam ao julgar.
São elas: a máxima do esclarecimento (que significa pensar por si mesmo); a máxima da mentalidade alargada (que se manifesta quando nos colocamos no lugar dos outros em pensamento); e a máxima da consistência (que significa estar de acordo consigo mesmo – sich selbst einstimming denken).
Hannah Arendt também poderia ter dado contribuição decisiva sobre a atividade de julgar, tema sobre o qual ela chegou a escrever alguns textos. Mas ao final de sua vida ela se impôs a tarefa de fazer um mergulho filosófico em busca de esclarecer os conceitos do pensar, do querer e do julgar. O longo capítulo do pensar consumiu muito mais tempo do que ela havia reservado. No entanto, o capítulo do querer foi concluído dentro do novo cronograma. Quando Arendt iniciou o esperado capítulo do julgar teve um infarto fulminante. Na máquina de escrever estava iniciado o capítulo O Julgar que ela acabara de iniciar.
Mesmo sendo especialista em Kant, é impossível imaginar se Hannah Arendt poderia ter ido muito além das ideias de Kant sobre o julgar. Mas é certo que sua perda nos privou de uma bela reflexão sobre o assunto.
Gustavo Theodoro