Nietzsche sempre foi um filósofo desconcertante. Dono de estilo inconfundível, teve em Shopenhauer seu primeiro mestre. Apesar de ter lido Kant, desde cedo Nietzsche desprezou a pompa de sua filosofia, seu aspecto formal, suas regras e seus imperativos. Além disso, Nietzsche percebeu rapidamente a principal fragilidade da filosofia de Kant: sua incapacidade de se livrar da Metafísica e de Deus (ainda que Kant continuamente desdenhe essa necessidade).
Nietzsche fez sua carreira descontruindo ídolos. Com o amadurecimento intelectual, passou a rejeitar também Shopenhauer, a quem designava por velho filósofo. Afastou-se de Wagner, por quem teve uns anos de encantamento por sua música e por sua cultura. Foi para ele que escreveu o Crepúsculo dos Ídolos após ter rompido relações com o músico.
Assim como Kierkegaard, Marx e Dostoievski, conseguiu perceber o dilema introduzido pela escola da dúvida de Descartes, dúvida que havia penetrado de modo definitivo na cultura ocidental a partir do desenvolvimento das ciências duras. Se Deus não existia ou se Deus estava morto era necessário rever toda a velha filosofia construída até aquele momento.
Para isso, pensava Nietzsche, era necessário não transigir, não ser condescendente, ainda que o mundo não fosse agradável à vista do filósofo. Por diversas vezes, Nietzsche fez referência ao martelo, ferramenta que tudo destrói. Era isso: para Nietzsche, vivemos em um cemitério de pensamentos superados e teríamos que ter coragem para enfrentar essa realidade. Cito abaixo o quase clamor de Nietzsche, exortando a humanidade a sair do conformismo das ideias banais ou superadas e ir além:
Tendes coragem, ó meus irmãos? Sois ousados? Não a coragem que se tem diante de testemunhas, mas a coragem do solitário e da águia, de quem nenhum deus já é o espectador. As almas frias, as mulas, os cegos, os homens embriagados, não têm o que eu chamo coração. Tem coração aquele que conhece o abismo, aquele que vê o abismo, mas altivamente. Aquele que vê o abismo, mas com olhos de águia – aquele que agarra o abismo com garras de águia: esse é corajoso.
Nietzsche, como se sabe, teve coragem, mas não conseguiu construir uma nova filosofia a partir das relíquias que encontrou. Sim, no uso do martelo foi muito mais eficiente, mas o trabalho de reconstrução não encontrou fundações sólidas. E esse é o risco do legado de Nietzsche. Por não ser conclusivo, pode ser apropriado e perigosamente utilizado, como o foi no Nazismo. Por isso sempre aconselho: leia Nietzsche, mas leia com cuidado.
Gustavo Theodoro
Caro Gustavo:
Nietzsche é mais perigoso do que se pensa. Uma leitura ingênua pode deixar transparecer uma facilidade ímpar; contudo, o volume de utilização de metáforas, analogias e simbolismos é tão grande que se torna um problema tal tipo de enfrentamento com o texto.
Como você bem disse, o trabalho iconoclástico de Nietzsche é um dos mais relevantes da História da Filosofia, mas… sua filosofia propositiva, segundo meu ponto de vista, é bastante frágil.
Eu só tenho dificuldade em concordar com uma opinião sua, sobre o Nazismo. É óbvio que uma filosofia inconclusiva, cheia de perspectivas, favorece o “uso” por diversos atores filosóficos e políticos; no entanto, a forma com que ela foi apropriada pelo Nazismo se deveu imensamente às deformações introduzidas pela irmã do “bigodudo” em sua obra. Minha orientadora do mestrado, por exemplo, não aceita o “Vontade de Potência/Poder” como obra autógrafa de Nietzsche.
Grande abraço,
Ricardo Garcia.