Vimos que na Revolução Francesa foi pela primeira vez utilizado os termos esquerda e direita. No século seguinte, Marx redefiniu a oposição que existia entre o povo e os membros da nobreza e do clero, passando a opor proletários a burgueses. O que há de característico nos dois movimentos é que ambos opunham uma maioria empobrecida contra uma minoria proprietária de privilégios e meios de produção.
Há uma herança dos séculos XVIII e XIX que ainda está em voga no conceito de esquerda atualmente em uso: o discurso do opressor e do oprimido. No século XVIII eram a nobreza e o clero que oprimiam o povo. No século XIX, os proletários eram oprimidos pelos burgueses.
Antes de prosseguir, faz-se necessário rever alguns conceitos relativos a formas de governo. Hoje há um consenso de que a democracia é o sistema de governo que garante maior participação popular e impede ocorrência de graves lesões aos direitos humanos. A despeito disso, há alguns preconceitos que devem ser revistos.
Os regimes aristocráticos, monárquicos ou mesmo os tirânicos têm boa parte de seu poder decorrente da aprovação popular. É um erro conceber que governos – exceto os totalitários – possam existir sem o apoio da opinião dos cidadão. Quem percebeu isso claramente foi James Madison, que disse: todos os Governos se baseiam na opinião. Montesquieu nunca teve dúvidas sobre o assunto e vaticinou: o poder do governo é proporcional à quantidade de pessoas a que está associado.
Cada regime tem seus balizamentos, seu ambiente de existência, suas regras de conduta. Montesquieu enumerou os sentimentos predominantes em alguns regimes: a honra, nas monarquias; a virtude, nas repúblicas; o medo, nas tiranias. Poderíamos incorporar a esses algumas vocações básicas de todo ser humano: o desejo de justiça, ou outros menos consensuais, como o desejo de igualdade e liberdade.
Não é consenso asseverar que as democracias de massa da atualidade sejam mais representativas do que alguns regimes monárquicos ou aristocráticos do passado. A análise feita aqui não pretende reabilitar o governo dos melhores ou outra forma aristocrática de governo. Mesmo a ditadura militar brasileira foi moldada pela opinião pública. No auge do milagre econômico brasileiro, exceto pela luta armada, pouca resistência à ditadura foi oposta pela população brasileira. A reação só começou a aparecer e a ganhar corpo após a crise do petróleo de 1973, que minou o milagre econômico e começou a mostrar a face da crise que durou até, pelo menos, 1994.
Feitos estes esclarecimentos sobre os regimes de governo, retomamos a discussão sobre as denominações “esquerda e direita”. Apesar da clareza dos ideais da Revolução Francesa, a revolta não teria ocorrido se a França não tivesse em mãos tão despreparadas para o exercício de poder. É evidente que os ideais republicanos já tomavam os corações e as cabeças de importantes formadores de opinião europeus, principalmente após o sucesso Revolução Americana. E a França, que era o berço das ideias republicanas e revolucionárias, teve a oportunidade de pôr em andamento a locomotiva da história.
Marx, que foi contemporâneo da revolução de 1848, anteviu a possibilidade de uma revolução acelerar a história e instituir a ditadura do proletariado, fase antecedente do momento em que a humanidade conviveria com uma sociedade sem classes.
Nota-se que, historicamente, os conceitos de esquerda e direita usualmente denotavam um conflito de classes, em que os chamados de esquerda eram em sua maioria constituídos por membros do povo, do proletariado, da classe trabalhadora. Já os que poderiam ser enquadrados como pertencentes à direita eram, em geral, conservadores (ou, quando muito, reformistas).
No século XX, houve um espraiamento das democracias liberais no ocidente. Assim, a luta contra os regimes não democráticos deixou de ser uma bandeira exclusiva da esquerda, já que nos países comunistas os regimes eram tirânicos, quando não totalitários.
Diante da ausência da bandeira da democracia – que foi incorporada pela maioria dos países ocidentais – e diante da derrocada soviética, era necessário redefinir os conceitos de esquerda e direita a que estávamos tão acostumados. Uma volta às origens parece ter sido a opção de uma parte da esquerda mundial e, em particular, da esquerda brasileira: reeditar o conflito de classes ainda que, para isso, seja necessário ampliar o conceito original de classes.
No próximo post, seguimos com estudo publicado sobre Norberto Bobbio sobre a atualidade da distinção entre esquerda e direita e retomamos a análise sobre conflito de classes utilizada pela esquerda brasileira.
Gustavo Theodoro
Dando o primeiro passo polissêmico. Você provavelmente se lembra de pesquisa feita com congressistas brasileiros há umas duas décadas, em que a maioria esmagadora se declarava “de esquerda”. Declarar-se de direita no Brasil sempre pegou mal e mesmo quem proclamava valores liberais (caso de partidos como PL, PFL etc.) na prática portava-se como replicador das piores práticas patrimonialistas, sem preocupação com aplicação de seus supostos ideais. Ser “de esquerda” sempre foi sinônimo de preocupação com os mais pobres e era um atestado natural de bondade. Ser “de direita” sempre significou (aos olhos de quem assim se intitulava) preocupação com a pátria, com a família etc. O diálogo em termos comuns era e ainda é impossível, pois cada lado vê o outro como amoral. Depois que a “esquerda”/classe operária finalmente chegou ao poder (e aqui incluo não apenas o PT, mas também parte do PSDB), não demonstrou, na minha visão, nenhuma capacidade transformadora (ou o que, no jargão da administração, é conhecido como liderança transformadora): Aliou-se gostosamente aos donos do poder de fato, reproduziu as mesmas práticas fisiológicas e patrimonialistas; enfim, aderiu, como um Ulisses desamarrado, ao inescapável e doce canto do poder. Podem argumentar que, com a esquerda no poder, o estrato menos favorecido da sociedade finalmente teve vez (sim, teve!). Mas a ideia de um imposto de renda negativo (que germinaria no nosso conhecido bolsa-família) é uma ideia fortemente liberal, defendida por Friedman e Hayek. Saindo desse atalho e voltando aonde quero chegar: Ainda que a prática do poder tenha revelado a nudez da chamada esquerda brasileira, seu discurso foi objeto de um “retrofit” (usando um termo do mercado imobiliário). Para fazer frente ao desconforto cognitivo gerado entre ideais nobres do passado e práticas espúrias e para sustentar a permanência do poder (apostando na força de uma estória messiânica – nós, do bem, versus eles, os conservadores atrasados, o mal), temas clássico do discurso esquerdista como a luta de classes ganharam nova roupagem (em alguns casos, claramente ridícula, como a tentativa de atribuir a reação aos rolezinhos ao “racismo da elite branca”). A classificação entre direita e esquerda ainda é útil? Acredito que não. Acredito que de um ponto de vista racional, o melhor é buscar ajuda na ciência. O estudioso da psicologia da moral Jonathan Haidt construiu uma teoria que é compatível com proposições de dois grandes antropólogos especializados na mesma área (Richard Shweder e Alan Fiske) que mostra que é possível classificar grupos sociais e sociedades de acordo com a adesão desses grupos a diferentes conjuntos de valores morais universais. Essa classificação permite identificar claramente, por exemplo, que liberais e conservadores nos EUA olham o mundo e o Estado por lentes claramente distintas (que vão além da simples dicotomia individualismo x coletivismo) e que não existe, na prática, um ambiente de diálogo comum. A teoria e as evidências permitem observar claramente que existe um continuum que separa os grupos políticos e esse continuum pode ser separado grosso modo em duas metades: De um lado, estão aqueles que entendem que o Estado é o supremo mediador de todas as relações sociais e econômicas (o que no Brasil coloca no mesmo saco partidos como o PT e o PMDB, Lula e Sarney) e, de outro lado, estão aqueles que entendem que o Estado tem o papel de garantir valores supremos (família, pátria, religião), mas não tem o direito de se meter em aspectos da vida social em que indivíduo deve ter primazia (essa metade estaria representada no Brasil por gente como os economistas Rodrigo Constantino e Armínio Fraga, o articulista Reinaldo Azevedo e o Partido Novo). Como eu disse, as dimensões que dão origem a essa distinção são um pouco mais sutis. Mas, em resumo, entendo, sim, que elas permitem um modelo bem mais refinado para enxergar a realidade política e social do que a velha dicotomia direita/esquerda. E (assunto para outro texto) a existência dessa dicotomia não implica uma valorização moral, isto é, não implica necessariamente que um dos lados é o melhor ou o detentor da verdade universal. Isso porque frequentemente os princípios e dogmas que orientam essas visões de mundo são defendidos mesmo em afronta às evidências científicas. Para ficar em um exemplo, os poucos conservadores brasileiros têm defendido uma bandeira que foi religiosamente hasteada nos EUA por John Lott (baseado em dados cuja metodologia foi severamente questionada), que é o direito dos indivíduos portarem armas de fogo. Uma abordagem utilitarista (que é a que eu defendo em casos como esse), ancorada em evidências cuidadosamente estudadas, rejeitaria claramente essa medida.