Há cerca de um mês publiquei uma coluna sobre o impeachment. Volto ao tema pois novas questões jurídicas emergiram. Trato do assunto com certo desapego, pois não há sinais de grande renovação com essa troca de comando. O PMDB esteve com o PT desde o primeiro momento e em particular a partir de 2005. Logo, dizer que temos um “novo Governo” é, sob certo prisma, um engano. Eu não tinha apreço pelo Governo Dilma e provavelmente não terei apreço pelo Governo Temer, ainda mais com os Telhadas e Jucás que têm sido anunciados.
Voltemos então ao tema do “golpe constitucional parlamentar”. O caso é extremamente complexo. Quem está cheio de certezas neste momento provavelmente está mal informado. Disse Fernando Pessoa que “convicções profundas só têm as criaturas artificiais”. O “apenas sei que nada sei” talvez nem seja o mais adequado para o momento. “Quanto mais sei mais se revela o tamanho de minha ignorância”, acho que esse é o pensamento que cabe.
Há razões para o impeachment? Acredito que sim. Mas não pelos motivos que serão apreciados pelo Senado amanhã. Tivemos eleições em 2014. Como a Lava Jato tem demonstrando, os cofres públicos eram saqueados por quase todos os partidos aliados. As estratégias criadas por Arnon Augustin, ensaiadas no ano de 2013, foram intensificadas no ano de 2014. O que são pedaladas? Não passam de formas de esconder da população o tamanho do desajuste das contas públicas.
Ordena-se que o banco público antecipe os pagamentos sem que essa obrigação seja registrada na contabilidade pública. É só maquiagem. Eu escrevi sobre esse assunto na época da campanha. A média dessas obrigações nos governos anteriores nunca ultrapassou R$ 1 bi. No ano de 2014, o valor do “empréstimo” tomado dos bancos públicos se estabilizou em R$ 70 bi. Tratou-se de fato inédito, manobra cuja essência é proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial no último ano de um Governo. No campo do julgamento político, os fatos contidos na denúncia inicial, na minha opinião, eram suficientes para dar validade jurídica ao impedimento.
No entanto, havia o fenômeno Eduardo Cunha no caminho. A disputa de votos no conselho de ética da Câmara que analisava sua cassação. Para não dar seguimento ao pedido de impeachment, Eduardo Cunha exigia – por meio de recados – que os três integrantes do PT da comissão o absolvessem. Fechado o acordo, o restante do partido resolveu não ceder à chantagem. No dia seguinte os três integrantes do PT anunciaram que votariam contra Cunha. Poucas horas depois Eduardo Cunha julgou o impeachment admissível.
Eduardo Cunha tinha alguns interesses a preservar. Ele não admitia que fatos ligados a seus mandatos anteriores pudesse levar à sua cassação. Tampouco tinha interesse de ver a Lava Jato discutida na ação de impedimento da Presidente. Assim, em seu despacho afirmou que teria havido preclusão quanto aos fatos ocorridos no mandato anterior.
Miguel Reale Júnior também tinha opinião de que o §4º do artigo 36 da Constituição afastava a possibilidade de punição da Presidente em face de fatos ocorridos no mandato anterior. Discordo da posição do jurista. O citado artigo já estava na Constituição Federal quando a emenda da reeleição foi aprovada. Esse fato deve ser levado em conta na discussão da matéria. Em interpretação sistemática parece-me conforme interpretar que, com o advento da reeleição, fatos do mandato precedente podem sim levar à perda do mandato.
Mas Eduardo Cunha tinha seus interesses. Optou por não admitir o processamento dos fatos que juridicamente levariam ao impeachment, incluindo aí os relatos envolvendo a Lava Jato. Com isso, a denúncia chegou ao Senado desfigurada, restando apenas analisar os fatos de 2015. É de notório conhecimento que as pedaladas foram quitadas em 2015, o que gerou inclusive incremento da dívida pública. Fatos que vinham sendo escamoteados pelas pedaladas vieram à tona. A meta fiscal de 2015 foi ajustada e restou ao Senado discutir os Decretos do Plano Safra.
As explicações do Ministério da Fazenda deixaram claro que o valor do incremento de despesa incorrido a partir da edição dos Decretos não superou R$ 3 bilhões. Além disso, esses Decretos não demandavam aposição de assinatura pela Presidente Dilma.
Se em minha visão é cristalino que há motivos para impeachment quanto aos fatos ocorridos em 2014, há muito poucas evidências para justificar o crime de responsabilidade no ano de 2015. Pela reprovação das contas do ano de 2014 a Presidente Dilma se tornaria inelegível (a popularidade dela parece já ter cuidado disso). O empréstimo simulado e o descumprimento da Lei Orçamentária de 2014, no entanto, poderiam ser considerados crimes de responsabilidade.
Em 2015, se bem forçamos a memória, nos lembraremos de que a meta fiscal foi corrigida e aprovada pelas casas legislativas. Se não resolveu todo o problema, colocou-o no patamar dos ilícitos cometidos pelos Governos anteriores.
A Europa não se emocionou com o discurso de golpe, pois cabeças parlamentaristas não concebem um governo que não tem 1/3 do parlamento. E os EUA devem preferir mesmo a queda de Dilma. Logo, essa pregação internacional do golpe é inútil. Serve mais aos convertidos nacionais.
Por aqui o momento é de escassez de serenidade. As dificuldades em nosso legislativo acabam se revelando, tornando patético o espetáculo diário da Câmara e agora do Senado. A surpreendente e inepta decisão de Waldir Maranhão acrescenta caos ao processo. É provável que o STF ainda seja provocado quanto ao próprio mérito do impedimento. Depois de prender um Senador em exercício, líder do Governo, e afastar o Presidente da Câmara, é arriscado supor que permanecerão inertes no exame do mérito.
Tenho para mim que o STF pode julgar todos os aspectos processuais, em especial para garantir os princípios da ampla defesa e do contraditório. Mas jamais poderá substituir o Senado no julgamento da matéria de fundo, sob pena de transformar a natureza do processo, que é político por serem os Senadores os responsáveis pelo voto decisivo.
Não se trata do fim do Brasil nem do início de uma nova era. É momento de pensarmos, no entanto, se o presidencialismo é mesmo o regime de nossa preferência. Desde que foi promulgada a constituição americana, há mais de 200 anos, só um presidente foi afastado (já que Nixon renunciou). O último a sofrer o processo de impedimento foi Clinton, por ter mentido ao Congresso. Ele acabou absolvido. O país de quem copiamos nosso rito utilizou o impeachment com muita parcimônia. Votos de desconfiança no parlamentarismo são muito mais comuns. O Governo Temer tende a ser extremamente fraco. Será que não seria esse o momento de voltar a discutir o parlamentarismo?
Gustavo Theodoro